ARARIPE COUTINHO E O COSMORAMA DE EROS
J HENRIQUE
Amar é ter travesseiro do “amo você”, amar é acordar cedo e fazer a
vitamina de banana, amar é esquentar um pé, amar é dividir a conta,
amar é pensar no outro sem perceber (e perceber o outro sem pensar).
Quando se pensa em amor, a primeira coisa que vem a cabeça são essas
formas gratuitas e rotineiras do amar. No entanto, sem amarguras e
remorsos, o amor também tem lado B. Está além dos corações
achocolatados e das ligações romântico-melosas. E caso alguém ainda
não o tenha percebido, talvez o amor tenha alienado. Rompamos! Saiamos
do clichê, da mesmice. A pretensão não é só mostrar um amor rosa,
vermelho, amarelo, manso. O amor pode ser preto, pode ser cinza, até
verde água. Na verdade, o amor pode ser o que quiser; ele é
onipresente, onipotente em alguns casos até onisciente. Quase um deus.
Ao contrário do costumeiro, a intenção é fugir de toda melancolia,
altruísmo gratuito, sorrisos largados e até dos típicos corações
avermelhados. Um amor pode também ser nocivo. Pode machucar o outro,
pode não ser saudável. O amor também vitimiza e, se bobear, mata.
O amor em sua forma multifacetada causa efeito e é difícil limitá-lo a
um só posicionamento. O amor adoece, faz ferida, pede tratamento. Amor
aliena, perde o foco, prende em grades, faz mal. Em outras palavras,
de forma imperativa e objetiva, o amor é uma trindade. O amor pode. O
amor está. O amor sabe.
O ideal do amor tão caro à literatura, as novelas e ao cinema se
desdobra em narrativas onde o tempo dos “amores eternos” predomina.
Amar é uma coisa que se aprende através dessas narrativas, é um fato
cultural, e testemunhamos, na vida pessoal e na clínica, a força
presente nas histórias de amor a configurar a cena dos amantes. Em
tempos onde o discurso hegemônico é o da igualdade entre homem e
mulher, pode ser complicado pensar o amor para além da duração
cronológica.
Conceber o amor como uma questão espacial é levar em conta o desejo do
homem como diferente do desejo da mulher; cada um ama de um lugar, que
é o espaço mesmo da diferença. Do contrário, corre-se o risco de
confundir a quantidade dos anos com a qualidade de uma experiência
amorosa intensa. A fluidez das relações amorosas na contemporaneidade,
tão lamentada, pode ser a conseqüência de uma idealização do amor a
buscar uma garantia no “feliz para sempre”; num terreno onde o jogo
entre os amantes se dá na reinvenção do amor possível a cada dia,
propiciando a entrega necessária a essa incursão no “infinito
particular” da diferença de cada um.
Aos amantes cabe viver o amor possível no espaço do momento presente.
Por isso, ao perceber os impasses da pessoa a amada articulada numa
frase “eu sou como um livro que não passa da página dois”, sejamos
capazes de amar a diferença, em lugar de recuar por falta de garantia.
Única forma de chegar a terceira página e escrever “Amo tanto você
que não quero saber do amanhã”... Suportando escutar: “Por que amo
tanto você, quero saber tanto do amanhã”.
A contemporaneidade marca o fim dos códigos amorosos, o poético entre
estes. Porém, mil vezes ressuscitada, a poética araripiana do amor nos
apresenta a modernidade, o mundo desencantado que o poeta com fina
ironia, traduz magnificamente: “tudo cabia num cheque. Até o amor”.
Araripe destitui o Eros racional da sublimidade e o reapresenta nas
águas primordiais esmagadoras onde corpos e almas se revelam a soleira
da porta: “por esta porta eu cruzei a dor e o abismo”. Trata-se do
abismo do plexo dionisíaco poético patético – ditame da vitalidade
sobrepondo-se à idealidade- em que são forjadas duas máximas do estado
amoroso. Uma: “para sempre”; outra: “nunca mais”.
No discurso amoroso, eivado de misoginia patriarcal, Araripe atesta
que a razão é feita de paixão: razão estruturante e paixão
desestruturante. E, neste território do neutro artesanato da poesia, o
amor é a infinita procura de renascimentos e subvertendo a imposição
da culturose dando vazão ao Eros sublime da homoeroticidade, anulada
pela razão: o espírito absoluto habitante dos reinos supra celestes e
supra lunares. Outrossim, segundo a antropóloga Fátima Fontes,
felizmente há o paraíso androginado, onde amor é reencontro de metades
iguais ou diferentes sexos e, a vivencia que subjaz e subage é a de
encontrar a unidade perdida, celebração jubilosa da naticividade da
natureza humana.
Em PASSARADOR, XV(Obra poética reunida, pag. 164) o Cosmorama de Eros
encontra-se magistralmente conceituado. E lembremo-nos enfim: vivemos
na atualidade a mais grave das privações humanas a incapacidade de
manifestar nosso amor e carinho de modo claro e honesto e sem nenhum
receio de ser mal interpretados. É impossível vivermos afastados dos
outros; e nossa necessidade de amor perdurará em toda nossa
existência. Um só instante de beleza tem a flor do amor. Viva a
falocracia.
Finalizando o afeto como elemento estruturador das relações
interpessoais, seja ela entre pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto,
é a idéia que devemos perseguir se quisermos evoluir como seres
humanos. Androfilia, urânia, porque em virtude da natureza ser
diferente, várias são as formas de os diversos indivíduos obterem
prazer. Amor e prazer: a busca por uma erótica unitária.
J.Henrique
Mestre em Teoria literária (Universidade de Brasilia – UNB –DF)
e-mail: paideumajh@gmail.com
A Halle
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