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sexta-feira, 25 de novembro de 2016

o magistério erótico de A estória de Lélio e Lina

o magistério erótico de A estória de Lélio e Lina

JHENRIQUE 

Miguilim e Rosalina se associam como contadores de estórias que transfiguram o sentido da existência. Por isso mesmo, Campo Geral e A estória de Lélio e Lina são narrativas interligadas pela parábase denominada Uma estória de amor, que se representa como súmula mitopoética do poder e da origem das estórias. Ao amor à vida em si mesma, que se poematiza no estilo do canto e da saga dos festejos de Manuelzão, especialmente no Romanço do Boi Bonito, corresponde o romance de amor de Lélio e Lina, que se caracteriza pela urdidura mítica de motivos maravilhosos, e não pela motivação realista da trama de efabulação. O mito da mulher encantadora de palavras configura o entrecho fabuloso da união amorosa do jovem e da velha que ostenta o portentoso poder de se revelar como anciã e menina. Rosalina traz no próprio nome o símbolo da natureza ritmada no ciclo perpétuo do envelhecimento e do rejuvenescimento. Desflor e flor ao mesmo tempo, Rosalina simboliza o eterno feminino no mundo rosiano do sertão. Ela se inclui no elenco das protagonistas do drama ritual da celebração da força formativa e metamórfica da natureza eternamente viva.

A estória de Lélio e Lina constitui o testemunho eloqüente de que Guimarães Rosa elabora cada uma de suas sagas sertanejas como forma revitalizada pela interpenetração dinâmica de dramas rituais, contos de fadas e lendas populares. O erotismo romanesco de Lélio e Lina se reporta ao substrato mitológico das divindades que congregam os extremos contrapolares da vida e da morte. Deméter e Perséfone são aspectos complementares de uma mesma potência divina, que morre e se metamorfoseia em uma nova vida. O ritual de ressurreição dos antigos mitos celebrados nas religiões de mistérios subage na trama simbólica das estórias de fadas. Nos contos maravilhosos, as sucessivas metamorfoses dos personagens representam a essencial heterogeneidade do ser humano. O drama iniciático da conversão da carência em plenitude vital nada tem a ver com o jogo livre da imaginação, porque se fundamenta na alteridade radical, que singulariza os entes que somos. Os motivos rituais das estórias feéricas, depreendidos por vários especialistas e sintetizados por Mircea Eliade no ensaio intitulado Os mitos e os contos de fadas, apresentam-se redivivos nas sagas rosianas do sertão.

A estrutura ritualística da estória de Lélio e Lina se traduz na iniciação de Lélio nos mistérios do amor, que lhe são revelados por Rosalina, a mulher revestida do duplo desempenho mítico da mãe Deméter e da filha Perséfone. A velha Rosalina e a jovem Lina não se contradizem, porque simbolizam o eterno feminino. A força da natureza, que se manifesta na mediação eterna da formação e da nadificação, congrega em si mesma os extremos contrapolares da vida e da morte. Antes de encontrar Rosalina, que o inicia no ritual erótico, que lhe transfigura a existência, o vaqueiro Lélio sofre o impacto dúbio do amor. Em viagem pelos caminhos sertanejos, apaixona-se à primeira vista pela Mocinha de Paracatú, que se lhe afigura quase uma menina “pequenina, brancaflôr, desajeitadinha, garbosinha, escorregosa de se ver”. O extraordinário fulgor dos olhos da Sinhá-Linda suscita a paixão repentina do vaqueiro, que se reconhece compelido a “imaginar em anjos e nas coisas que os anjos só é que estão vendo”. O amor incorrespondido pela Mocinha de Paracatú converte a existência de Lélio na experiência dolorosa de “uma saudade sem razão”.

Sob o acicate da paixão que o domina, Lélio chega à fazenda do Pinhém, onde se emprega como vaqueiro. À noite, não consegue conciliar o sono e se entrega ao devaneio que o transporta para o lugar do encontro com a Sinhá-Linda. Na excursão anímica, que o põe diante da Mocinha de Paracatú, sente-se como se “precisasse de repente de ser no pino de bonito, de forçoso, de rico, grande demais em vantagens, mais do que um homem, da ponta do bico da bota até o tope do chapéu”. Na condição de vítima de um amor irrealizável, vislumbra, “na vivice do rosto daquela Mocinha, nos movimentos espertos de seu corpo”, o resumo de “uma lembrança sem paragens”. Fulminado pelo olhar de Sinhá-Linda, começa a sofrer a sua lembrança como fogo que arde e queima, como se “em alma, uma tatarana lagarteasse”. O terrível sofrimento amoroso perdura até o dia em que avista a figura feminina “diversa de todas as outras pessoas”, que o seduz pela magia da “voz diferente de mil, salteando com uma força de sossego”, e pelo poder metamórfico, que se irradia de seu corpo. Na visão embevecida do vaqueiro, a mulher se revela como mocinha subitamente metamorfoseada em velhinha. O ritmo de transe da jovem Lina na anciã Rosalina atua como signo e pressentimento da transmutação existencial de Lélio.

Na utilização ficcional do dispositivo artístico da interação com o refletor, o narrador sublinha o estatuto mitopoético da mulher que difere de todas as pessoas. Na percepção de Lélio, Lina parece “Velhinha como-uma-flôr”. Os índices que se lhe aplicam sugerem magia pessoal, atestada no calor íntimo da voz, no “acêso rideiro dos olhos”, no riso festivo e no olhar reto, e não furtivo, como o da Mocinha de Paracatú. Ao contrário da Sinhá-Linda, que provoca o sentimento nostálgico, Rosalina inspira quietação e felicidade, o que induz o vaqueiro a chamá-la de santa. A resposta de Lina, no entanto, desestimula qualquer idéia teológica de santidade: “Meu Mocinho: nunca fui soberba... E acho que nem não fui tola. (...) Não fui maninha: tive um filho”. A insinuação de que virgem equacionada com santa redunda em tolice prefigura o magistério erótico de Lina, que preconiza a conjunção amorosa do corpo e do espírito em oposição ao ditame puritano do dualismo psicofísico. No tom brejeiro que a singulariza, a velhinha de cabelos brancos declara que gosta de Lélio e reconhece que seria bom se o Mocinho a tivesse conhecido há uns quarenta anos, pois teriam dançado uma quadrilha e ele a chamaria de Zália. Insinuante, acrescenta que não se lamenta do tempo transcorrido, porque o “coração não envelhece”.

No primeiro encontro com Rosalina, o vaqueiro Lélio aprende que amor abstraído do corpo significa saudade sem razão. Sob o impacto das palavras da mulher que “tinha vida ensinada”, ele se dirige para a casa das prostitutas, lembrando-se de que Lina havia estranhado que ele não tivesse procurado os corpos aprazíveis das Tias. Enquanto encalça os passos para satisfazer o desejo sexual, o vaqueiro sente repentino “bem estar, de espírito e de corpo”, que o faz recordar o instante em que, na tentativa confusa de explicar a sua estória, que já não sabe se de amor ou bobagem, Rosalina lhe responde que se engana com ilusões amorosas do páramo empíreo, pois ele “tem coração lavradio e pastoso”. Desde então, Lélio sempre retorna à casa da Velhinha em busca do cuidado e carinho com que recebe lições “em belas palavras que formavam o pensar por caminhos novos, e que voltavam à lembrança nas horas em que a gente precisava”. Encantado, ouve a suave voz, que “sabia esperanças e sossego”, admira o rosto viçoso e risonho da Velhinha e percebe que de seus olhos mágicos se desprende o poder capaz de lhe curar a “banzeira da vida”.

A magia da fala de Rosalina se manifesta na força mitopoética de animar os entes que nomeia. Ao se referir à moita de bambu, o “bambual se encantava, parecia alheio uma pessôa”, como se “ela estivesse ensinando outro poder inteiro de se viver”. O efeito mágico do dizer e do afazer poético de Lina resulta do magnífico dom apotropaico, em que o encantamento verbal se intimiza com o saber acerca da seiva das coisas naturais. A Velhinha exorciza o distúrbio amoroso de Lélio com palavras encantadas e, quando o vaqueiro se torna doente do fígado, ela o cura com o auxílio de ervas e flores de sua hortaliça. No duplo desempenho mítico de encantadora de palavras e senhora de plantas curativas, Rosalina se reveste da função hierática da protagonista intimizada com a potência regeneradora da natureza verdejante: “Ali, dona Rosalina ainda parecia mais fazeja e mais senhora, dona de ervas e flores, sabedoria do mundo seu”. A correlação de logoterapia e fisioterapia, que singulariza a atuação de Rosalina como curadora, constitui mais um traço que a irmana com o eterno feminino, que, desde os mais remotos tempos, detém o privilégio da ciência terapêutica. A cura pela magia das palavras e plantas, analisada e interpretada por Pedro Lain Entralgo no contexto da cultura grega, em que sobressai o maravilhoso mito de Calipso, persiste na saga rosiana de Rosalina.

Logo que Lélio se restabelece, Lina o inicia nos mistérios do amor. A lição fundamental do magistério erótico da mistagoga do sertão começa com a advertência de que o vaqueiro necessita esquecer-se da “Mocinha de fantasma” se não quiser tornar-se prisioneiro do madrastio que o atormenta. De nada vale a saudade sem razão, pois a amada de seus sonhos “nem saúde verdadeira de mulher ela não demonstra ter”. O ensinamento amoroso prossegue com a revelação de que a experiência genuinamente erótica supõe a hierofanização do sensível: “Escuta: mulher que não é fêmea nos fogos do corpo, essa é que não floresce de alma nos olhos, e é seca no coração...”. A dicção sentenciosa de Lina, em que se revela a verdade original de que o corpo erotizado constitui o suporte da epifania anímica, termina com o ditame categórico de que deve o Mocinho apagar de sua memória a “tetéia coitadinha”, porque “ela nunca vai saber o que a vida é”. A originalidade do magistério de Rosalina se evidencia quando se verifica que o dualismo psicofísico preside à gênese e ao desenvolvimento da civilização ocidental. O puritanismo religioso das seitas órfico-pitagóricas, o platonismo e as doutrinas judaico-cristãs promoveram, no decurso histórico da cultura do Ocidente, o litígio perpetuado na oposição antagônica da matéria e do espírito, do corpo sensível e da alma inteligível.

À saudade sem razão, que faz Lélio errar na lembrança sem paragens, Rosalina contrapõe o sentimento festivo da vida: “Festa, meu Mocinho, é o contrário da saudade...”. Com o deliberado propósito de dar continuidade à iniciação de Lélio nos mistérios do amor, Rosalina decide realizar uma festa. O cantador Pernambo, que “sabe tudo quanto é moda e cantiga, os estilos todos”, põe em versos os predicados incomparáveis da festeira Rosalina, que se apresenta para animar “o engenho da festa” como “uma das pessôas mais influídas e alegradas”, vestida de preto lustroso em nítido contraste com os seus belos cabelos tão branquinhos, que alumiavam. Ao dançar a mazurca com Rosalina, Lélio sente “uma ausência de si, feito fosse aquela dança uma arte de religião”. Na representação da dança como folguedo religioso, o narrador sintoniza emocionalmente com a maravilhosa visão em que Lélio surpreende o rejuvenescimento da Velhinha dançarina, que se metamorfoseia em criança:

“Al a Velhinha se asia tão delicada, senhora de serenim, em giro baile, leve espécie de criança, que sabia ser e sorrir e olhar, sem estorvo nenhum.”

Ao estatuto arcaico das metamorfoses celebradas nos contos maravilhosos, que remontam ao substrato mítico das religiões de mistérios, corresponde o antigo pronome popular Al, que significa “outra coisa”. A Velhinha se torna outra, transforma-se em criança. O arcaísmo do termo pronominal se compreende no contexto geral da mundividência mitopoética de Guimarães Rosa. No vasto âmbito da literatura ocidental, a saga rosiana singulariza-se pela invenção do mito do sertão. A representação do ordenamento mítico do mundo sertanejo se realiza através de uma perspectiva narrativa em permanente diálogo intertextual e interdiscursivo com as mais diversas manifestações culturais. “A estória de Lélio e Lina”, por notável exemplo, reencena o sentido religioso do canto, da dança e da festa, que pertence à tradição cultural dos povos primevos, que nada têm de primitivos. Rosalina celebra a festa como ato de culto. Na ação jubilosa da dança de Lélio e Lina, a experiência religiosa suplanta a atividade meramente lúdica dos dançarinos. De acordo com as festas sagradas e ritualmente celebradas, que transmutam a clausura da realidade puramente humana na abertura teofânica da possibilidade do encontro com potência divinas, que cantam e dançam com os homens nas cerimônias religiosas, a dança festiva de Rosalina assume a função hierática da conversão existencial do vaqueiro Lélio.

Na condição de aprendiz do amor de corpo e alma, Lélio se dá conta de que Rosalina “semelhava pertencer a outra raça de gente” e reconhece que as suas palavras abriam “uma claridade em seu espírito”. Numa das lições do magistério erótico, a Velhinha ensina ao jovem discípulo que Jesus Cristo, o deus encarnado por excelência, santificou Maria Madalena, “que tinha sido dos bons gostos”, mas não fez Santa nenhuma virgem “moça-de-família, nem uma marteira senhora-de-casa, farta-virtude”. O poder de abrir as portas da percepção e descerrar o amplo horizonte da transfiguração existencial de Lélio se manifesta particularmente nas estórias de Rosalina, “que eram tão verdadeiras que fugiam do retrato do viver comum”. O ritual amoroso de Lélio e Lina se representa no simbolismo metamórfico da Velhinha transformada em Menina, no magistério erótico da alma epifanizada pelo calor do corpo, nas palavras encantadas, nas estórias contadas, no canto, na festa, enfim, dos dançarinos de mazurca, que formam o corpo de baile, na acepção genuinamente rosiana da mobilidade pura do sentimento festivo da vida.

Os problemas amorosos de Lélio funcionam como contraponto dramático do magistério erótico de Rosalina. Inexperiente na arte de amar, ele sofre três amores, que o deixam desnorteado. No primeiro, com a Mocinha idealizada de Paracatú, que mais parece uma valquíria assexuada, contrai a enfermiça saudade sem razão, que o faz errar nas lembranças sem paragens. No segundo, com Mariinha, ingenuamente vivencia o amor como tocar de sinos e anúncio de casamento. No lãodalalão do devaneio amoroso, que o faz ouvir o badaladal do sino, confunde solicitude com amor, e não consegue perceber a paixão de Mariinha pelo seo Senclér. Ao desabafar com a confidente Rosalina, Lélio recrimina a falta de juízo de Mariinha, que se deixa apaixonar pelo patrão. A Velhinha minimiza suavemente a recriminação do Mocinho desolado com o argumento de que amor e juízo não se compatibilizam. O erro de Lélio não decorre apenas da idealização angelical da mulher amada, mas também da inversão dialética, que o induz ao desfrute sexual da mulatinha cor de violeta e olhos verdes, chamada Jiní. A errância amorosa resulta da separação do corpo e do espírito, que tanto se manifesta no espírito sem corpo da Mocinha de Paracatú, quanto no corpo sem espírito da Jiní.

A iniciação de Lélio nos mistérios revelados por Lina somente se consuma quando o aprendiz de amor reconhece a indissolúvel união da matéria sensível e da alma inteligível, que se concretiza na encarnação do corpo espiritual e do espírito corporal. O ritual erótico, que subage na trama simbólica da estória de Lélio e Lina, consiste na celebração festiva do vínculo nupcial do homem com a força formativa da natureza. No desempenho mítico da função de mãe primordial, que simboliza o eterno feminino, Rosalina inicia o vaqueiro Lélio na misteriosa intimidade da matéria ávida de vida, que constitui o suporte materno, a matriz de todos os viventes. No exercício sacerdotal do magistério amoroso, Rosalina celebra o eros cosmogônico, que inclui e transcende o amor puramente humano, porque se fundamenta no princípio primevo da nascitividade em geral. A união amorosa de Lélio e Lina, que se representa como casamento sagrado no final feliz da estória, constitui um hino de louvor ao divino zoogônico, que preside à origem primeira e ao fim último de tudo que existe:

“Ele a ela: – “É nada?” E ela a ele: – “É tudo. E vamos por aí, com chuva e sol, Meu-Mocinho, como se deve...” O Formôs corria adiante, latindo sua alegria. – “...Chapada e chapada, depois você ganha o chapadão, e vê largo...” Lélio governava os horizontes. – “... Mãe Lina...” “– Lina?!” – ela respondeu, toda ela sorria. Iam os Gerais – os campos altos. E se olharam, era como se estivessem se abraçando.”
 

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