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quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O ROMANCE DRAM�TICO DE ADONIAS FILHO JOSÉ HENRIQUE DA CONCEIÇÃO

O ROMANCE DRAM�TICO DE ADONIAS FILHO
JOSÉ HENRIQUE DA CONCEIÇÃO
A interpenetração dinâmica dos planos do enunciado e da enunciação do romance de Adonias Filho configura uma trama de efabulação radicalmente dramática. A intriga central, que norteia o destino de todos os personagens, gira sempre em torno do sortilégio da morte. O enunciado narrativo é o drama da vida que não subsiste, senão porque a morte existe. Compelidos pelo ritmo de transe de um mundo que mergulha as suas raízes no coração das trevas, os personagens são condenados a transpor em vida os umbrais da morte. Sofrem a morte dos outros e de si mesmos, testemunhando o suplício de uma existência tartárica. Protagonizam a mitologia da morte, realizando o estranho trânsito para um estado plutônico-subterrâneo. Todos padecem as influições nefárias dos mortos. Eles são os servos da morte, os oficiantes de um rito pavoroso, cujo mito circunscreve uma natureza que não conhece o homem, e em que o homem não se reconhece. Proclamando o sacrifício de tudo que existe, a natureza deste mito ou o mito desta natureza se inscreve na alma humana como a sinistra epifania de um poder demoníaco em sua encarnação bestial e destruidora. O mundo em que os personagens vivenciam a agonia da morte se representa como a encenação de um influxo maligno, que fantasmagoriza o universo em que se exerce a experiência humana. O deserto imóvel da natureza e o gesto paralisado do homem são o anverso e o reverso de uma mesma potência de nadificação. A desumanização do personagem e a devastação do cenário emblematizam a interiorização e a exteriorização do propulsar demoníaco, que neutraliza e dissolve as normas do dia nas caldeiras passionais de uma excessividade caótica.
Em consonância com o sortilégio da morte, a técnica dramática de composição do romance se caracteriza pela interação dialética de um processo de enunciação totalmente sincopado, dissonante e trágico. Os eventos são representados como um rapto, uma captura inominável. A seleção, o adensamento e a condensação de um acontecimento único e singular se consuma na proliferação de uma galeria de mortos, que sobrevivem vampirizando o sangue e o espírito dos vivos agonizantes. O advento da morte, que constitui o evento sinistro de um mesmo drama essencialmente agônico, não se compatibiliza com a tradicional narração progressiva de eventos consecutivos. Pelo contrário, provoca a segmentação da narrativa em seqüências descontínuas e funcionalmente justapostas. Os episódios se revelam dramáticos em si mesmos, e não somente como passos e trâmites de um objetivo terminal de máxima tensão. A dramaticidade de cada episódio se manifesta através de enunciações que representam obsessivamente um acontecimento que não só inspira aflição e terror, mas também suscita o desencadear intempestivo de paixões convulsivas, convertendo os seres humanos em almas cativas que se exasperam inutilmente na gestação insana das sombras.
A técnica fundamental de intensificação dramática mobiliza a estratégia narrativa de explicar o acontecimento partilhado e sofrido por todos mediante a utilização alternada de vários pontos de vista. A multiplicação dos focos narrativos reflete as diversas tentativas para se compreender o tenebroso mistério da vida que não cessa de morrer e da morte que não cessa de renascer das sombras da violência, do clamor e da vingança. A fim de encenar o drama dos servos da morte, a arte narrativa de Adonias Filho se notabiliza pela inserção do mecanismo estrutural do enredo trágico na trama de efabulação romanesca. A interação dialética do rigor da composição e do vigor da paixão, que singulariza o drama trágico, comparece na estrutura arquitetônica da narrativa de Adonias Filho. Os romances que se intitulam Os Servos da Morte , Memórias de Lázaro Corpo Vivo constituem uma trilogia romanesca, que caracterizamos como "O perséquito dos mortos". Do diálogo intertextual com a tragédia grega, a que se reporta a apropriação romanesca do princípio arquitetônico da trilogia de Ésquilo, resulta a revolução estrutural a que o romancista submeteu a tradição do romance brasileiro. A arte dramática do romancista se traduz principalmente no intercâmbio dialógico dos planos gerais e particulares da narrativa. Os planos gerais são verdadeiros prólogos dramáticos, que antecipam e concentram os temas, os motivos e o tom dominante do drama a ser encenado pelas múltiplas visões narrativas. Os planos particulares funcionam como atos e cenas, como versões diferentes de uma história que insiste em permanecer como a cifra obscura de um destino avassalador. A lei desta narrativa se define, portanto, como a justaposição descontínua das imagens de um mundo furiosamente em dissolução. O que mais surpreende, porém, neste romancista, é a energia dialética com que expõe atos e cenas, aliando o extraordinário poder de síntese verbal a uma formidável passionalidade. É precisamente esta harmonização da economia programada dos recursos expressivos com a desmesura aparentemente incontrolável do conteúdo existencial representado que confere à sua obra o estatuto privilegiado de uma consumada arte dramática.
O drama agônico de Os Servos da Morte é basicamente representado em três atos com seus respectivos prólogos dramáticos. Os atos um e dois contêm fundamentalmente três cenas, e o terceiro, duas. Em todos os atos e cenas, a morte é caçadora, e todos são caçados. A pulsão erótica implica a compulsão tanática. Elisa é o emblema desta paixão mortífera. Renegada pelo pai que lhe recusa a paternidade e a interna no colégio de Ilhéus, a menina de dez anos é subjugada por um temperamento mórbido. Progressivamente se reconhece parasitária, embrutecida, completamente alheia e estranha ao ser humano. As crianças se lhe afiguram uma abstração total, uma multidão infantil. Só se compadece do que é inumano. Identifica-se com os fios d�água que correm entre parasitas, lavando os pedaços brutos de pedra. Sente o muro de pedra como uma pessoa mais nobre do que o homem. A matéria dura da pedra se lhe apresenta como o correlato objetivo de sua alma, que se imobiliza e se petrifica no ódio surdo contra todos os seres viventes. Retornando a casa aos dezessete anos, logo depois que o pai abandona a família, deixando como legado os encargos de uma dívida que ameaça reduzir mãe e filhas à miséria, a jovem concebe o plano de procurar Paulino Duarte, despertar-lhe desejos, criar-lhe uma paixão.
O projeto de Elisa não se limita a sacrificar-se, vendendo o corpo para resgatar a dívida da família. A tensão impetuosa da rebeldia distende em sua alma a paixão furiosa da vingança. O preço que estipula para o seu sacrifício é a destruição do que se lhe apresenta como a raça maldita dos homens. Os filhos do casamento já estão amaldiçoados no ventre materno. Nascendo, crescendo e se parecendo cada vez mais com o pai, cada filho lhe aumenta o ódio contra todos. O adultério se lhe impõe como possibilidade única de executar o sinistro desígnio de aniquilar os Duarte. Percebe ser necessário ter um filho somente seu, que seja a carne de sua carne, o sangue de seu sangue, a alma de sua alma. Concebe um filho com Anselmo com o deliberado propósito de lhe insuflar o veneno de seu furor vingativo. A gestação do filho se processa como incubação de uma sombra da violência. Predestinado desde o ventre materno, Ângelo nasce da morte da mãe para sofreviver e disseminar o sortilégio da morta. A mútua implicação do morrer da mãe e do nascer do filho simboliza a epifania sinistra de uma transfusão diabólica. Elisa se transforma no espectro do filho que não vive, senão como a sua sombra, o seu reflexo macabro, a sua presença terrificante. A casa dos Duarte se converte no inferno das almas .
Paulino Duarte foi atingido em primeiro lugar pela vingança de Elisa. Permanecia horas como uma estátua, sentado, as mãos cruzadas, os pés atados no chão, o corpo assumindo uma imobilidade de rocha. O seu espírito, queimando como uma chama, inutilmente procurava iluminar os espaços negros da inteligência. Assim se inicia o processo da captura que lhe imobiliza o movimento da vida e o transforma numa matéria empedernida. O espírito remanescente é a chama que consuma o processo de carbonização da fisionomia, que se transmuta na máscara mortuária. Petrificado como o magma depois da erupção, Paulino Duarte subsiste como prisioneiro da morte, como servo da morta. Ele próprio não tarda a ficar cego. Ainda em vida, e justamente em reação ao nojo de ser possuída por ele, Elisa arquiteta a sua cegueira, lançando-lhe um candeeiro aceso, cujo tubo quente lhe queima a face, provocando enorme chaga que, paulatinamente, lhe atinge os olhos. Não podendo contemplar as coisas, os objetos e os seres que o rodeiam, toda a sua visão se consome no suplício das imagens de um mundo morto. Assiste ao renascimento dos mortos que existem dentro dele, vivos nas trevas, principalmente Elisa, Emílio, Juca Pinheiro, o pai bêbado. Perfaz-se, portanto, o mariticídio diabolicamente tramado. Morto em vida que não é vida, vendo só o que foi, contemplando defuntos, ouvindo o que já não existe, o marido sofre o perséquito dos mortos. Para os filhos, resta apenas o legado da miséria. São escravos da morta, os servos da morte.
O drama trágico de Memórias de Lázaro se representa em quatro atos com os respectivos prólogos dramáticos, precedidos por um prólogo geral. Em cada ato, sucedem-se cenas de aflição e terror. O que parece ser a segunda cena do quarto ato é, na verdade, o epílogo dramático da narração cujo decurso segue o curso maldito do Vale do Ouro. Signo metálico do sangue que aduba a terra da maldição, o vale é a mortalha dos seres que o habitam. Recortado por uma estrada infinita, que se inicia em parte alguma e se encaminha para lugar nenhum, o vale é o símbolo do inferno das almas. Neste cenário tenebroso, mais uma vez o erotismo se manifesta como arte de armar a morte. Quem desempenha este ato inaugurado por Elisa é também uma mulher, chamada Rosália, que se compraz, ainda bem jovem, em arrancar e queimar os seus cabelos. Foge sempre do pai como de um monstro, detestando a sua presença. Prender e matar ratos, eis a sua distração predileta. Espancada pelo pai por estar a cortar as penas e a furar os olhos dos pássaros, Rosália deforma-lhe o rosto com um facho aceso. Projeta casar-se com um homem qualquer, que a liberte do jugo paterno e, sobretudo, que a ajude a cumprir o desígnio jurado do parricídio. Reconhecendo a natureza desumana da filha, o pai se opõe ao seu casamento, seja com quem for, alegando o dever de sustar a multiplicação de seu sangue maldito. Rosália, porém, efetiva o seu plano, conquistando Alexandre e exigindo que ele a arranque à força da tutela paterna.
Alexandre se apresenta ao pai de Rosália e lhe declara categoricamente que pretende desposá-la a qualquer custo. O pai se irrita, investe contra o pretendente, ambos lutam violentamente. Rosália aproveita a oportunidade da acirrada luta para executar o parricídio, aproximando-se furtivamente e esfaqueando mortalmente as costas do velho. Na tentativa de inocentar Rosália, Alexandre, antes de fugir da cena do crime, a aconselha a esperar os irmãos e lhes dizer que foi ele o assassino. Quando chegam os irmãos, Rosália lhes comunica que o pai foi assassinado por Alexandre. O irmão Roberto não aceita a versão da irmã, adivinhando ter sido ela mesma a assassina. Chicoteiam-na até quase à morte. Para se vingar do irmão, Rosália, logo que se reencontra com Alexandre, conta-lhe que foi estuprada pelo irmão Roberto. Vivendo juntos como homem e mulher, Alexandre não toca sequer o corpo de Rosália. Inicialmente, porque as chicotadas o deixaram em chaga viva. Depois, porque a mulher lhe diz estar grávida de Roberto. Na ausência de Alexandre, Rosália atrai Gemar Quinto a sua casa. Trata-se de um leproso que vagueia o seu corpo morto pelo vale, como um entulho no pó dos caminhos desertos. Espreitando a casa da irmã, Roberto surpreende Rosália a seduzir o leproso, exibindo-lhe as pernas, os seios nus. Interpelada pelo irmão, Rosália lhe responde que atraiu Gemar Quinto a sua casa, porque queria a sua doença para transmitir a Alexandre e a todos os habitantes do vale.
Ciente da trama diabólica da irmã, Roberto a mata, convencendo-se de que estava a cumprir um dever, uma ação de extermínio de uma força destruidora. Quando retorna a casa, Alexandre a vê dependurada na viga do quarto, uma corda no pescoço. Enterra-a no chão do próprio quarto e sai vagando como uma sombra errante pelo vale até ser recolhido por Jerônimo. Único amigo e protetor de sempre, Jerônimo assegura a Alexandre que Roberto não violentou a irmã. Alexandre não acredita, exige que desenterrem juntos o cadáver de Rosália, que se lhe devassem as entranhas na presença de Roberto para se comprovar a existência ou inexistência do feto. Cavado o solo, o corpo em putrefação não permite o almejado exame comprobatório. Alexandre, subjugado pela ira diante do irremediável, mata Roberto, e passa a viver sob o acicate do sortilégio da morta. Em qualquer parte, e a toda hora, contempla as trevas escarnando os ossos da mulher. Sente nas narinas o cheiro da carniça. Ouve o estouro de um ou outro órgão do corpo que se desfaz. Diante dele, a imagem de Rosália morta não se desloca nem se apaga, permanecendo como uma visão direta. O terror se implanta no centro de suas órbitas. Completamente dominado pela sinistra visão, Alexandre erra sem destino, alheio a tudo e a si mesmo, completamente convertido no servo da morte, no escravo da morta.
Corpo Vivo contém quatro atos com os respectivos prólogos dramáticos. Cada ato é um mosaico de representações imagéticas, articulado principalmente pela visão de João Caio. Seu desempenho equivale ao de uma câmera cinematográfica, cujo foco se desloca, representando em profundidade o plano geral da narrativa. Através das imagens que se enquadram em seus olhos é que assistimos à representação da saga do protagonista Cajango. A função dramática deste plano geral consiste na encenação da legenda de uma vida que, submetida ao ditame do clamor, do ressentimento e da vingança, finalmente se liberta das sombras da violência. Já os planos particulares constituem as visões cênicas, que sustentam a trama imagética das sucessivas versões de um acontecimento perpassado de aflição e terror. Entre estes planos, o principal é formado pela narrativa de Abílio, inteiramente concentrada na exposição em relevo do mecanismo estrutural da gesta de Cajango, o menino que assistiu, escondido, ao assassínio dos pais e dos irmãos, conseguiu escapar e ocultar-se na selva, onde foi acolhido por Inuri, o índio que o iniciou nas artes da resistência implacável e da guerra vingativa. Todos os planos narrativos se conjugam na suscitação do corpo movente das imagens que tecem a urdidura da efabulação. A técnica dramática de composição é similar à dos romances já mencionados. Consiste num processo de montagem, que resulta do enquadramento de imagens funcionalmente justapostas. A narrativa se teatraliza, põe diante dos olhos do leitor cada uma das cenas, e as imagens assumem a iniciativa do processo narrativo. Toda e qualquer imagem funciona como uma visão direta do que se representa. Ao invés de uma trama de ações, presenciamos um drama de paixões.
A configuração imagética da estrutura narrativa representa dramaticamente a legenda de uma vida, a de Cajango, que se forma e se transforma para além do sortilégio da morte. Os eventos não são propriamente narrados nem descritos, mas refletidos na consciência e, sobretudo, na experiência do personagem inserido numa determinada situação dramática. Não há, pura e simplesmente, a figura tradicional do narrador, mas, sim, os refletores, quer dizer, os personagens que refletem e filtram em suas visões as imagens que se tecem como símbolos de um mundo em gestação. É no rigor e vigor das imagens que a narrativa se processa, emoldurando-se no espaço cênico como uma visão direta projetada pela tela mental em que se converte o personagem-refletor. Justamente porque são receptores é que os personagens são projetores de imagens. São olhos-câmeras especialíssimos, que não se limitam tão-somente à visão, mas, sobretudo, à vivência do evento. Não atuam apenas como videntes, mas também como auditores, como atores de uma experiência imediatamente vivida por todos os sentidos, sejam gustativos, olfativos, etc. Regida pela trama imagética de efabulação, a narrativa é necessariamente descontínua, pois a cada momento se enquadra uma nova imagem. Não há nenhum narrador substantivo, porque o sujeito se dessubstancializa, diferindo continuamente de si mesmo, transformando-se numa função narrativa que se modifica de acordo com a imagem que o domina. Solidariamente vinculada ao enunciado trágico, a enunciação é radicalmente dramática. Supõe uma despersonalização, a que se seguem diversas personificações.
A interação dialética do vigor passional e do rigor racional da arte dramática de Adonias Filho não só aparece na estrutura arquitetônica de cada romance, mas também comparece nas constelações narrativas de um mesmo princípio arquitetônico de composição. Romances diferentes se irmanam como variações de um princípio artístico fundamental. Os romances que compõem a trilogia que intitulamos "O perséquito dos mortos" foram concebidos em função de um projeto, de um cálculo, de um estatuto artístico tão rigoroso quanto o princípio arquitetônico da trilogia de Ésquilo. Três dramas trágicos compõem a Oréstia . Todos representam as emoções de aflição e terror, suscitadas por atos nefandos, tais como o mariticídio em Agamêmnon e o matricídio em Coéforas. O trágico decorre do circuito inexorável da vingança. Os mortos assassinam os vivos. Morto, o rei Agamêmnon tacitamente decreta a morte da rainha Clitemnestra, a mariticida. A imagem cênica que domina a representação do drama Coéforas é o túmulo de Agamêmnon. Orestes, filho de ambos, se vê compelido a matar a mãe para vingar o pai. Vivo, o filho se torna servo do pai morto. Ao realizar o ditame da vingança, assumindo a condição terrível do matricida, Orestes é subjugado pelo sortilégio da mãe morta e, sobretudo, perseguido pelas Erínias, que são terríveis potências do mundo subterrâneo, que não perdoam nenhum crime contra pessoas do mesmo sangue. A luta de morte é a disputa entre os poderes masculinos e femininos, que se apresentam nestes dois dramas como antagonistas irredutíveis. A violência trágica resulta de uma oposição antagônica. O terceiro drama, simbolicamente denominado Eumênides, apresenta o julgamento de Orestes e, por intercessão de Palas Atena, a oposição antagônica se transmuta em oposição complementar. Celebra-se uma aliança entre os poderes adversos e, conseqüentemente, se realiza a catarse das emoções de aflição e terror.
O romancista Adonias Filho absorve da trilogia de Ésquilo o esquema dinâmico de se representar até o paroxismo um plexo de paixões aflitivas e pavorosas para, finalmente, efetivar a catarse ou liberação dessas emoções trágicas. O romancista encena três vezes um mesmo drama de aflição e terror até que a vida estrangulada pela morte possa finalmente libertar-se do inenarrável rapto da estranha potência de nadificação. A sua trilogia romanesca não é tão-somente a mimese do mito da natureza, mas também a catarse da natureza do mito. A lição trágica é que o mal não pode ser vencido pela astúcia da razão. Não resulta de um erro racional, mas de uma errância passional. Na experiência da paixão, e não na consciência da razão, é que se viabiliza a catarse do mal. O exorcismo das sombras do clamor, do ressentimento e da vingança é o ato supremo do homem que desperta de entre as almas que dormem no cárcere do que foi. A última representação da tragédia romanesca da maldade é a celebração de um corpo vivo, que ultrapassa os limites circunscritos pelo reino dos servos da morte, que são reféns dos mortos, corpos mortos, portanto. A conversão do corpo morto em corpo vivo constitui a origem primeira e o fim último da trilogia do perséquito dos mortos. A gesta de Cajango é a gestação de um destino que se impõe para além da impregnação demoníaca dos mortos que vivem nas trevas, das trevas e pelas trevas.
A inserção do mecanismo estrutural da tragédia grega na trama de efabulação do romance dramático de Adonias Filho não se explica somente na apropriação do princípio arquitetônico da trilogia de Ésquilo, mas também na assimilação do enredo trágico genialmente concebido pelos poetas Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Importa assinalar que a teoria tradicional do enredo trágico não corresponde ao drama ático. A interpretação canônica da tragédia grega, formulada por Aristóteles e reiterada ao longo dos séculos, concebe o enredo trágico como representação da ação, que se efetua na sucessão lógica dos eventos consecutivos, na trama dos acontecimentos, na concatenação dos fatos. Das peripécias e reconhecimentos que se realizam na seqüência logicamente ordenada decorrem o surpreendente, o palpitante, o emocionante, o que normalmente se entende por dramático. Convém sublinhar que esta interpretação do mecanismo estrutural do enredo trágico se tornou normativa para a teoria do drama na civilização ocidental. E todas as teorias dramáticas modernas, que privilegiam a representação progressiva de eventos consecutivos ou a causalidade dos acontecimentos, são tributárias da poética aristotélica. No entanto, a interpretação aristotélica da tragédia grega não se compatibiliza com a natureza do drama ático, não compreende os atores trágicos e, sobretudo, ignora completamente o sentido e a função do trágico. A tragédia grega não é a representação, mas, sim, a interpretação e a vivência da ação. Não constitui objeto de representação propriamente dramática o que aconteceu nem porque aconteceu. No drama ático, o que se representa é a demanda do sentido do que aparece e acontece. Numa formulação paradoxal, mas rigorosamente verdadeira, a tragédia grega é um drama sem ação, um drama estático. E os atores não são puramente humanos. Na poesia trágica dos gregos, os homens não se concebem divorciados dos deuses luminosos ou trevosos. Na verdade, a tragédia grega é fundamentalmente a encenação da luta entre os novos e os antigos deuses. Oréstia é a disputa dos deuses olímpicos e das divindades subterrâneas.
Não só o drama de Aristóteles não é o drama da tragédia grega, como também o trágico teorizado pelo filósofo não corresponde ao trágico poematizado por Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. O trágico aristotélico é basicamente uma catástrofe que resulta de uma ação cujo efeito desastroso se desconhece. O herói cai em desgraça, porque comete um erro (hamartia ), porque faz o que não sabe ou não sabe o que faz. Esta concepção do erro trágico decorre do ensinamento de Sócrates, segundo o qual o homem erra por ignorância. A catarse seria, pura e simplesmente, a purgação da ignorância, a passagem da obscuridade para o ilumínio do reconhecimento (anagnorisis ). Mas o trágico da tragédia grega é principalmente ontológico, e não meramente epistemológico. A tragédia não é apenas do saber, mas, sim, do ser humano. O que há de abissal no homem é que ele não se atém a fundamento algum nem se detém diante de nenhum ordenamento do poder subterrâneo ou do dever olímpico. Creonte confronta o poder subterrâneo, e Antígona desafia os mandamentos olímpicos. O contorno essencial do horizonte vital do herói trágico se lhe apresenta mais como convite a superá-lo do que como acicate da advertência ou temerosa reverência. Sua entusiástica desmesura se manifesta na dupla excessividade originária da vontade de transcendência e da capacidade de transdescendência. Ir para além, para cima ou para baixo, significa não se limitar numa razão de ser e, conseqüentemente, ultrapassar-se na paixão do acontecer.
Nas obras primas do teatro grego, as ações decisivas ocorrem fora do palco. Édipo que perfura os olhos, Jocasta que se enforca, o ingresso de Édiplo no sacrossanto bosque das Eumênides não constituem objeto de representação propriamente cênica. E os relatos são extraordinariamente parcos e escassos. Em Sete contra Tebas, o mensageiro comunica laconicamente que a cidade foi salva. Nada se ouve acerca do que efetivamente aconteceu nem se diz como se tornou possível a vitória. Há peças em que o terrível, que conforma o conteúdo da tragédia, não só não se representa, mas, sobretudo, é pressuposto como um sucesso há muito tempo acontecido. Édipo-Rei , o exemplo preferido de Aristóteles, não é, como pretende o filósofo, uma tragédia de acontecimento. Ao se iniciar o drama, tudo já aconteceu: o herói já matou o pai e se casou com a mãe. O que se representa não é o acontecimento, mas o paulatino e progressivo esclarecimento do culpado, que se consuma na tragédia do auto-reconhecimento. O drama se concentra na interpretação, e não na representação dos fatos. No Agamêmnon, o mariticídio não é cenicamente representado, mas previsto e predito pela visão sobrenatural e pela estranha dicção de Cassandra. Em Os Persas, a catástrofe denominada trágica já aconteceu antes mesmo de se iniciar o drama. Necessário se torna reconhecer, portanto, que a tragédia grega é destituída do que tradicionalmente se entende por ação.
Nos Sete contra Tebas , os acontecimentos decisivos ocorrem fora do palco. O sorteio no campo argivo, em que se define a estratégia do combate, o ataque à cidade, a batalha e, sobretudo, o duelo dos irmãos são fatos do enredo, mas não são apresentados à visão do espectador. Ésquilo abstrai dos fatos os aspectos dramaticamente significativos, concentrando-se na representação dos efeitos mentais e emocionais dos eventos. O que se representa não é o evento, mas a sua vivência dramática. O drama expõe o decurso inexorável de uma maldição herdada. Inicialmente, o poeta apresenta a aflição de uma cidade ameaçada por um sortilégio maligno. Em seguida, no clímax do drama, exibe o advento sinistro da maldição, que se apodera de um dos membros da família maldita de Édipo, transtornando-lhe o equilíbrio mental. Finalmente, os espectadores contemplam os resultados da maldição, consumados na destruição da estirpe masculina da família edipiana e na redenção de Tebas. Gradualmente, a representação dramática se concentra nos irmãos amaldiçoados, isolando-os do resto da cidade. No prólogo, o que não é visível para os espectadores é sugerido pela imaginação. A menção a muralhas, torres e portões nos limites entre a cidade e seus inimigos é que influencia a concepção do que se vê. Outro procedimento fundamental para converter em cena visível o que excede a possibilidade de visão e audição dos espectadores consiste na utilização dramática da sentinela como refletor dos eventos. Os espectadores vêem as atividades dos inimigos através de seus olhos. Não se representam ações racionais, mas reações passionais. Após Eteócles terminar a sua oração, conclamando a todos para a defesa da cidade, o coro adentra o palco completamente transtornado e entoa, num ritmo frenético, uma ode que traduz, não só o terror das virgens tebanas, mas também o caos e o pânico da cidade sitiada. Como o texto se reparte em seções definidas, diversas partes do coro, ou membros individuais, alternam exclamações diante do avanço dos invasores. Este arranjo coral contribui para fortalecer a atmosfera geral de confusão generalizada. A forma de expressão do párodo corresponde isomorficamente ao conteúdo caótico da agitação e do tumulto que se representa. Os comentários relativos ao avanço da armada argiva rumo à cidade são entremeados de súplicas aos deuses protetores de Tebas, cenicamente representados em suas estátuas. As virgens do coro, diferentemente da audiência, podem divisar a planície e observar o avanço dos adversários. Elas descrevem e, simultaneamente, reagem ao que vêem. Quanto mais próximo o exército inimigo, tanto mais frenéticas se tornam as virgens. A contraparte visível do assalto é a resposta passional do coro, pois o seu pânico corresponde à ferocidade dos inimigos. Através da reação do coro é que os espectadores experimentam o perigo que se aproxima. O párodo mostra o efeito da guerra, e não a guerra propriamente dita. O drama grego, particularmente o de Ésquilo, não é a representação da ação logicamente concatenada, mas, sim, a representação das emoções passionalmente suscitadas pelos eventos. A tragédia grega é um drama de paixões, e não simplesmente uma trama de ações.
Intimamente associada ao mecanismo estrutural da tragédia grega, a trilogia romanesca de Adonias Filho é genuinamente dramática, porque não se limita à representação de ações logicamente concatenadas. Pelo contrário, representa as emoções de aflição e terror passionalmente suscitadas pelo advento sinistro do perséquito dos mortos. E o drama representado é trágico, porque os personagens não sofrem pelo que fazem, mas pelo que são. Eles são os servos da morte, os prisioneiros dos mortos. Todos se nos apresentam subjugados pelo sortilégio maligno da estranha potência de nadificação. Em Memórias de Lázaro, por notável exemplo, o poder destruidor se patentiza na sinistra epifania do espírito do vale. No prólogo geral, com que se inicia o romance e se antecipam os temas, motivos e o tom dominante da narrativa, o vale não é descrito realisticamente como um cenário físico, mas apresentado simbolicamente como o inferno das almas que o habitam. As imagens que compõem o simbolismo infernal do espírito do vale são a estrada, o canal do lodo e, sobretudo, o vento. A estrada é caracterizada como infinita com suas curvas, uma linha sinuosa, uma serpente, a espinha, o coração do vale, o seu mau destino, o trajeto que se impõe. Infinita, a estrada não conduz de um lugar a outro, porque não tem início nem fim. Curvilínea, não leva a parte alguma, porque traz sempre de volta. Sinuosa como uma serpente, é traiçoeira, nada tem de acolhedora. Como o corpo em torno da espinha, o vale existe, porque coexiste com a estrada. Igual ao coração, que recebe o sangue e o bombeia, a estrada recolhe e dissemina a emanação mefítica de seu mau destino. Simbolizando o circuito fechado de um ditame inexorável, a estrada é o trajeto da clausura que se impõe a todos os habitantes do vale. Quanto ao canal do lodo, trata-se de um fundo sulco de lama e água morta, pegajoso, fétido e apodrecido. O lodo do canal se revolve como uma lava incandescente. Tudo que cai no canal é tragado pela lama viscosa. E o vento é a voz do vale, o alarido tenebroso que soa como uma litania fúnebre e ressoa num guaiar de convulsões andantes. Símbolo do látego das almas, atuando como um demônio vivo, o vento açoita o capim crestado, fustiga as reses e o pó da estrada, e o seu lamento provoca o endurecimento dos nervos dos viventes que agonizam atormentados pelo espírito sinistro do vale.
O princípio que articula o enredo trágico das Memórias de Lázaro é a epifania sinistra do espírito do vale, que se representa na trama das imagens, e não das ações. O drama da paixão de Alexandre é travejado pela trama imagética de efabulação. O personagem não age, apenas sofre o efeito deletério da atração sinistra da imagem do vale. Mesmo quando se evade do circuito do vale, escalando a montanha e realizando a penosa travessia da planície de pedras, a imagem do vale o persegue como uma visão direta. Na mata de Terto, na vila de Coaraci e, sobretudo, nas terras de Natanael, sente-se atraído pelas imagens da estrada, do canal de lodo, do vento triste e violento. Possuído pela aparição fantasmagórica do espírito do vale, sente-se compelido a retornar ao lugar infernal de onde jamais conseguiu sair. O deslocamento físico no espaço apenas enfatiza, por contraste, a paralisia de sua alma para sempre coagulada no tempo do inelutável passado. Petrificada como o magma depois da erupção, a sua vida se consuma no reconhecimento de que o espírito do vale é o fogo infernal, que calcina tudo que é ou existe. O lodo que viscoso fervilha no canal é fogo que carcome a terra. Raio do inferno, e não fonte de vida, luz que não tem brilho, mera chama sem cor que escoa de um céu de chumbo, o sol do vale é uma espécie de gás que esgota a seiva e queima as raízes das plantas, ao mesmo tempo em que acirra o ódio e alucina o sangue dos homens. A lepra de Gemar Quinto é fogo sangüíneo, que lhe devora o corpo. O destino deste leproso simboliza a condição trágica dos habitantes do vale. Embora não fisicamente, os habitantes do vale são psiquicamente leprosos, simplesmente porque, dominados pela fúria do sangue e pelo ódio do espírito, excecutam o macabro sacrifício de corpos humanos, na propagação diabólica de uma carnificina generalizada. Anima , alma que move todos os corpos, deriva de anemos, vento. Em grego, espírito se diz pneuma, o spiritus dos latinos. Pneuma spiritus provêm de pnéo e spiro, ambos significando respirar. Dia e noite respirando o alento mortal da escaldante lufada e do soturno alarido do vento que age como um demônio vivo, como o látego das almas carbonizadas e dos corações empedernidos, os vivos agonizantes e os mortos que vivem nas trevas são inspirados pelo fulgor sombrio e pelo sopro demoníaco do tenebroso espírito do vale.

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