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sábado, 11 de janeiro de 2014

Ontologia JH

O que é a ontologia?

Alasdair MacIntyre e Keith Campbell
Tradução de Desidério Murcho
O termo ontologia foi introduzido pelos autores escolásticos no séc. XVII. Rudolf Goclenius, que mencionou a palavra em 1636, poderá ter sido o primeiro a fazê-lo, mas o termo era de tal modo natural em latim e começou a surgir tão regularmente que as disputas sobre quem detém a prioridade da sua introdução são vãs. Alguns autores, como Abraham Calovius, usavam o termo sem o distinguir de metafísica; outros, usavam-no como nome de uma subdivisão da metafísica. Johannes Clauberg (1622-1665), um cartesiano, introduziu em seu lugar o termo ontosofia. No tempo de Jean-Baptiste Duhamel (1624-1706), a ontologia distinguia-se claramente da teologia natural. As outras subdivisões da metafísica são a cosmologia e a psicologia, das quais a ontologia também se distingue. Assim, o termo ontologia, enquanto termo técnico, já existia quando foi finalmente canonizado por Christian Wolff (1679-1754) e Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762).

Wolff

Para os autores mencionados, a ontologia trata do ser enquanto ser. O termo “ser” era entendido univocamente, como se tivesse um só sentido. A ontologia pode consequentemente reivindicar ter como precursores João Duns Escoto e Guilherme de Ockham, e não Tomás de Aquino. No caso do próprio Wolff, Gottfried Wilhelm Leibniz foi mais influente do que a escolástica, mas na sua Philosophia Prima Sive Ontologia, Wolff refere explicitamente Francisco Suárez. Segundo Wolff, o método da ontologia é dedutivo. O princípio principal que se aplica a tudo o que é é o da não contradição, que sustenta que uma propriedade do próprio ser é que não pode conjuntamente ter e não ter uma dada característica ao mesmo tempo. Daqui, pensava Wolff, seguia-se o princípio da razão suficiente, nomeadamente, que em todos os casos tem de haver alguma razão suficiente para explicar por que qualquer ser existe em vez de não existir. O universo é uma colecção de seres, cada um dos quais tem uma essência que o intelecto é capaz de apreender como ideia clara e distinta. O princípio da razão suficiente é invocado para explicar por que a algumas essências foi concedida a existência e a outras não. As verdades sobre os seres são todas necessárias. Assim, a ontologia nada tem a ver com a ordem contingente do mundo.
A influência da escolástica tardia (ou o que Étienne Gilson chama “essencialismo”) na metafísica racionalista foi paga na mesma moeda, pois a divisão da metafísica em ontologia, cosmologia e psicologia reentrou nos manuais escolásticos, onde persistiu até muito recentemente. Juntamente com esta divisão, persistiu a perspectiva de que o ser constitui um tópico independente para lá dos tópicos das ciências especiais. A persistência desta perspectiva explica-se talvez por factores culturais e não intelectuais. Nos séculos XVIII e XIX a escolástica encontrava-se apenas em seminários, até o Papa Leão XIII ter reintroduzido o tomismo no debate intelectual. Só deste modo a escolástica conseguiu evitar a némesis (na forma de Immanuel Kant) que esperava a metafísica racionalista.

Kant

No anúncio escrito das lições dadas de 1765 a 1766, Kant tratava a ontologia como uma subdivisão da metafísica, incluindo esta a psicologia racional, mas distinguindo-se, neste caso, da psicologia empírica, da cosmologia e do que Kant chamava a “ciência de Deus e do mundo”: “Então, em ontologia, discuto as propriedades mais gerais das coisas, a diferença entre os seres espirituais e materiais.” Mas quando Kant escreveu a Crítica da Razão Pura,resolveu de uma vez por todas as coisas relativamente à ontologia. As duas passagens nucleares são a discussão da segunda antinomia da razão pura e a refutação do argumento ontológico. Wolff argumentara a priori que o mundo é composto de substâncias simples, que não são percepcionadas nem possuem extensão nem configuração, sendo cada uma delas diferente, sendo os objectos físicos compósitos, colecções de substâncias. Na segunda antinomia, a tese é que “toda a substância compósita no mundo consiste em partes simples, e nada existe em parte alguma que não seja ou simples ou composta de partes simples”; e a prova que Kant apresenta é efectivamente wolffiana. Mas Kant apresenta uma prova igualmente poderosa a favor da antítese, nomeadamente, que “nenhuma coisa composta do mundo consiste de partes simples, e nada existe seja onde for que seja simples.” Ao expor a falácia comum às duas provas, Kant tornou possível aceitar uma vez mais a ontologia como um corpo dedutivo de verdades necessárias aparentado à geometria, na sua configuração, mas tendo o ser como objecto de estudo. A sua análise da existência na sua refutação do Argumento Ontológico é uma contraparte a isto.
A partir de Kant, o uso mais influente do termo ontologia, para lá dos manuais de escolástica, tem sido nos escritos de Martin Heidegger e W. V. Quine. Ambos foram saudados pelos autores escolásticos por se entregarem essencialmente à mesma tarefa que eles, adoptando o Padre D. A. Drennen esta perspectiva de Heidegger, fazendo o Padre Bochenski o mesmo no que respeita a Quine.

Heidegger

Com respeito à ontologia de Heidegger, o Padre Drennen tem talvez parcialmente razão. Heidegger queria explicar que carácter tem o ser de ter para que a consciência humana seja o que é. Começa por ter uma rixa com o princípio da razão suficiente na forma que assumiu em Leibniz e Wolff. Isto, afirma, é um ponto de partida inadequado para a ontologia porque a pergunta “Por que há algo em vez de nada?” pressupõe que já sabemos o que são o ser e o nada. Heidegger tratava o “Ser” e o “Nada” como nomes de poderes contrastantes e opostos cuja existência está pressuposta em todos os nossos juízos. Nos juízos negativos, por exemplo, falar do que não se verifica é referir implicitamente o Nada. A ontologia de Heidegger, contudo, não tinha configuração dedutiva nem sequer sistemática. Procede por vezes por meio da exegese da poesia ou dos fragmentos mais aforísticos dos filósofos pré-socráticos, sendo assim muito diferente da ontologia escolástica.

Quine

No caso de Quine, o nome ontologia tem de facto sido dado a um conjunto bastante diferente de preocupações. Quine preocupou-se com duas perguntas intimamente relacionadas: A crença numa dada teoria compromete-nos com a existência de que tipo de coisa? E quais são as relações entre a lógica intensional e extensional? A sua resposta à primeira pergunta é que ser é ser o valor de uma variável: temos de admitir a existência daquela gama de entidades possíveis cujos nomes podem ocorrer como valores daquelas variáveis sem as quais não podemos formular as nossas crenças. A sua resposta à segunda pergunta é que as lógicas intensionais e extensionais envolvem a admissão não apenas de tipos diferentes de entidade, mas também de tipos incompatíveis de entidade. “Os dois tipos de entidade só podem ser acomodados na mesma lógica com o género de restrições de Church, que servem para não os misturar, e isto é quase uma questão de ter duas lógicas separadas com um universo para cada” (From a Logical Point of View, p. 157).
É claro que as preocupações de Quine são de facto relevantes para Wolff e para os escolásticos apenas no sentido em que uma compreensão das investigações de Quine nos impediriam de tentar construir uma ontologia dedutiva à maneira de Suárez ou Wolff.

Problemas da ontologia

A ontologia é a ciência ou estudo mais geral do Ser, Existência ou Realidade. Um uso informal do termo significa o que, em termos gerais, um filósofo considera que o mundo contém. Assim, diz-se que Descartes propôs uma ontologia dualista, ou que não há deuses na ontologia de d’Holdbach. Mas no seu significado mais formal, a ontologia é o aspecto da metafísica que visa caracterizar a Realidade identificando todas as suas categorias essenciais e estabelecendo as relações que mantém entre si.

Ser enquanto ser

A existência, a mais compreensiva categoria de todas, deve abranger membros que têm o mínimo em comum. Contudo, a filosofia ocidental procura há muito um conteúdo substancial comum que esteja presente em seja o que for unicamente em virtude de existir. A história destas tentativas para identificar o carácter comum do ser enquanto ser não é encorajante.
No Sofista, o Estrangeiro Eleata de Platão propõe que um papel na rede causal do mundo é uma condição necessária e suficiente da existência, que “o Poder é a marca do Ser.” Esta ideia tem tido alguma circulação no séc. XX, particularmente no trabalho de David Lewis (1986) e D. M. Armstrong (1978, 1989, 1997). Este princípio eleático é um teste atraente da realidade no mundo natural, pois seja o que for que for real na natureza deve ser capaz de fazer qualquer diferença. Pode ser necessário enfraquecer a exigência, admitindo um espaço-tempo passivo que forneça a arena na qual actuam os seres activos. Mesmo assim, o princípio eleático parece que é na melhor das hipóteses um aspecto contingente do mundo porque não parece haver qualquer impossibilidade envolvida na ideia de um ser completamente inerte. E é também uma petição de princípio contra entidades abstractas como os números, ou pontos geométricos, ou conjuntos, que, se existirem, estão fora do nexo causal.
Para Samuel Alexander (1920), ser é ser o ocupante exclusivo de um volume de espaço-tempo. Isto elimina não apenas entidades abstractas, mas até uma teoria dos campos do mundo natural, pois os campos de forças ocupam regiões do espaço-tempo mas não se excluem entre si.
J. M. E. McTaggart (1921-1927) argumentou que a marca do ser é estar numa correspondência de determinação com todas as suas partes infinitas. Uma correspondência de determinação assegura que de uma descrição suficiente de algo se pode derivar uma descrição suficiente de qualquer das suas partes. Esta exigência acarreta que o espaço, o mundo natural, e a maior parte dos conteúdos das mentes, são irreais. Desta consequência a conclusão a retirar é que a marca do ser proposta por McTaggart é excessivamente exigente.
O problema de um conteúdo substancial para o ser enquanto ser reflecte-se no comportamento idiossincrático do verbo “existir.” Considere-se negativas singulares: “Aristóteles não fala espanhol” é verdadeira porque o predicado “não fala espanhol” se aplica ao item referido pelo termo sujeito. Mas “Pégaso não existe” não pode ser verdadeiro em virtude de o predicado se aplicar ao item referido pelo termo sujeito. Se o termo sujeito refere seja o que for, esse item existe, o que tornaria toda a frase falsa.
Ficou famosa a declaração de Kant de que a existência não é uma propriedade, e esta perspectiva tornou-se amplamente aceite. A lógica moderna que descende de Gottlob Frege e de Principia Mathematica (1910-1913) de Alfred North Whitehead e Bertrand Russell substitui todas as expressões “existe” por “há.” Assim, “Os leões existem” torna-se “Há leões,” ao passo que “Os dragões não existem” se torna “Não há dragões.”
Em termos técnicos, este processo substitui qualquer afirmação de existência por uma afirmação que usa um quantificador que abrange um domínio (o mundo), de modo que existir se torna uma questão não de possuir uma propriedade especial, a existência, mas de possuir alguma outra propriedade corriqueira. A determinação de reformular todas as afirmações de existência ou inexistência com “Há…” e “Não há…” é expressa pelo dictumde W. V. Quine: “Ser é ser o valor de uma variável.”
Se a existência não é uma propriedade, não pode ser uma perfeição. Isto anula aquelas versões do argumento ontológico a favor da existência de Deus que dependem de a existência ser uma das perfeições. Uma resposta recente consistiu em argumentar que, mesmo não sendo a existência uma propriedade, a existência necessária é-o (Plantinga, 1974, 1975; van Inwagen 1993).

Realidade e efectividade

É a existência tudo o que há, ou devemos reconhecer categorias ainda mais vastas do que a do Ser? Em Platão, e mesmo antes, encontra-se uma distinção entre Realidade (O que é) e a Aparência (O que não é nada, e no entanto apenas parece Ser). Aristóteles distingue o existente completo (Ser), do que está ainda em formação (Tornar-se). Estas distinções vêem-se talvez melhor como uma maneira de advogar que há diferentes graus de realidade no seio da categoria do Ser.
Aristóteles distinguia também o completamente Real (Acto) do que pode ser (Potência). Esta distinção antecipa uma corrente forte em ontologia que reconhece mundos possíveis para lá do mundo efectivo, aquele que habitamos. Nos neoplatónicos, e mais tarde em Alexius Meinong, ao domínio do existente soma-se o do subsistente, que abrange o que não existe apesar de poder ter existido, como acontece com as montanhas douradas.
Uma ontologia completa deste género, na qual o domínio da Essência é mais lato do que o da Existência, foi apresentada por James K. Feibleman em 1951. No trabalho de Richard Sylvan (1980), isto alarga-se ainda mais. No seu sistema, as variáveis individuais abrangem não apenas o efectivo e o possível, mas também o impossível.
Mundos possíveis. Gottfried Wilhelm Leibniz foi o primeiro a fazer um uso sistemático da ideia de que se pode considerar que todas as possibilidades formam mundos — cada um dos quais é um domínio internamente consistente que pode combinar alguns elementos iguais aos do mundo efectivo e outros diferentes. O mundo efectivo é um dos mundos possíveis, distinguindo-se de todos os outros pelo facto de que nenhum dos seus elementos é meramente possível. Se podermos referir-nos a mundos possíveis, é fácil definir seres necessários, que de outro modo são tão difíceis de caracterizar, como aqueles seres que estão em todos os mundos possíveis (ver mais à frente).
Realismo modal. Os mundos possíveis põem à nossa disposição explicações de poderes causais, de condicionais contrafactuais, de disposições inexercidas e de propriedades reais ininstanciadas. Estas vantagens levaram David Lewis (1986) a abraçar o realismo modal, que afirma a realidade literal de todos os mundos possíveis.
Outros filósofos, apesar de valorizarem estas vantagens, recuam perante a expansão aparentemente infinita da ontologia que isto exige, o que conduziu a explicações em termos de sucedâneos de mundos possíveis: Rudolf Carnap, entre outros, propôs que um mundo possível é um conjunto maximamente consistente de frases. Armstrong, entre outros, desenvolveu a ideia de Wittgenstein de que um mundo possível é uma recombinação inefectiva dos elementos deste mundo. Peter Lopston (2001) defende um realismo redutivo, que expande o tipo de propriedade atribuída no mundo efectivo de modo a incluir características que poderia-ter-tido. O sucesso destas abordagens é tema actual de controvérsia.
Pluralidade de mundos na teoria quântica. A noção de que o mundo em que vivemos não é o único foi também recentemente esboçada na interpretação de alguns paradoxos da física quântica, que de outro modo são desconcertantes. Nestas explicações, o mundo não é uma entidade única e unificada, mas antes algo sujeito a bifurcações contínuas, um processo que gera um número cada vez maior de mundos. As perspectivas deste género que defendem a pluralidade de mundos são diferentes, numa acepção importante, do realismo modal: todos estes mundos quânticos são supostamente efectivos, mas mutuamente inacessíveis.

As categorias do ser

A principal tarefa da ontologia é fornecer um inventário das categorias, as divisões mais gerais da Realidade. As mais importantes são as seguintes:
Substâncias. Uma substância individual ou particular é um objecto, uma coisa por direito próprio. As coisas comuns do quotidiano, como tijolos e camas, fornecem um modelo para a categoria da substância. Exige-se que as substâncias tenham várias características básicas, apesar de não ser claro que estas características sejam compatíveis entre si.
Particularidade e individualidade. Uma substância é simultaneamente um particular e um indivíduo; não é apenas um pato qualquer, mas precisamente este pato. Um objecto é dacategoria que é (um pato) em virtude das suas propriedades. Mas se estas propriedades são universais, partilhadas por muitos particulares, não podem por si conferir particularidade. Alguns filósofos, o mais influente dos quais foi Locke, propuseram um constituinte das substâncias que desempenhariam este papel, um substrato que conferiria particularidade e individualidade. Um substrato seria um particular bruto, um item inerentemente particular e individual, mas sem qualquer outra característica. É difícil ver como esses particulares brutos poderiam distinguir-se entre si, mas se os particulares brutos são todos exactamente parecidos entre si, como poderia qualquer um deles individualizar a sua própria substância? Mais em geral, os particulares brutos entram em conflito com o dictum de Aristóteles de que o mínimo de ser, a menor coisa que pode ser, é um “isto-tal”, um particular que tem uma propriedade.
Outra proposta é que se individua as substâncias pela sua localização. As localizações — pontos de espaço-tempo e regiões — são em si particulares únicos; se puderem ter particularidade primitiva, isso levanta a questão de saber por que razão os outros particulares requerem um substrato ou outro particularizador. Há também outras dificuldades com a localização: a localização não individua campos de forças ou outras entidades físicas que não monopolizam o seu espaço. Não funciona também para quaisquer itens de tipo imaterial.
Ou a individualidade — e portanto a particularidade — é primitiva, ou há particulares brutos, ou cada substância tem uma propriedade especial, chamada ecceidade ou istidade, que pode conceder particularidade e individualidade ao seu portador. Para uma discussão deste problema veja-se o capítulo quinze de From an Ontological Point of View, de John Heil (2003).
Indivisibilidade. As substâncias têm de ser distintas dos compostos, de modo que uma substância única tem de ser indivisível, no sentido de não ter partes que sejam elas mesmas substâncias. Isto elimina as coisas comuns, que não podem ser substâncias. Esta exigência de simplicidade é muito enfatizada na doutrina de Tomás de Aquino sobre Deus. Leva em Leibniz à monadologia e em Roger Joseph Boscovich à doutrina dos pontos materiais.
Persistência. As substâncias distinguem-se das suas propriedades porque têm a capacidade de persistir, isto é, retêm a sua identidade passando por pelo menos algumas mudanças. Um carro dos bombeiros pode mudar de cor, e no entanto continuar a ser o carro dos bombeiros que sempre foi. As substâncias compostas comuns da vida quotidiana têm alguma persistência, mas não podem sobreviver a todas as mudanças. Um carro dos bombeiros desmontado e reduzido a sucata já não é um carro dos bombeiros. A persistência completa pertence apenas às substâncias fundamentais.
Independência. Qualquer substância poderia ser a única coisa em existência. Se esta independência for interpretada causalmente, nenhum objecto comum é uma substância, pois todos são postos em existência, e por isso a sua existência depende das suas causas. O espaço-tempo e os seus campos poderiam considerar-se substâncias, mas mesmo estes dependem, nos sistemas teístas, da actividade criadora de Deus. Assim, no tomismo, Deus é a substância por excelência, mas o mundo natural inclui substâncias criadas, que dependem de Deus mas que, noutros aspectos, existem por si. Espinosa, insistindo na independência absoluta, concluiu que só pode haver uma substância, a totalidade omniabrangente, Deus-ou-Natureza.
Se tomarmos a independência das substâncias num sentido lógico e não causal, uma substância é seja o que for que, em princípio, pode subsistir sozinha. Esta era a exigência de David Hume, e seja o que for que lhe obedecer é uma substância humiana. Para compostos, a exigência é que a coisa, incluindo todas as suas partes, poderia existir sozinha. Esta exigência é muito menos rigorosa do que a independência causal e não exige persistência.
Teorias da ausência de substância. Tem-se tentado eliminar as substâncias. Russell propôs que um objecto concreto comum não é mais do que um feixe de todas as suas propriedades. Mas há sempre a questão de saber o que agrega o feixe. Além disso, dado que as propriedades são universais, esta teoria acarreta que nenhumas duas coisas podem ter uma parecença exacta.
Na versão de Donald Williams da teoria dos feixes (1966), as propriedades são instâncias particulares ou tropos (ver mais à frente). Isto evita o problema da possibilidade de haver dois objectos com uma parecença exacta, mas exige que todos os membros do feixe estejam “co-presentes” — exige que estejam todos no mesmo lugar do espaço-tempo. Há dificuldades em tratar uma localização no espaço-tempo como se fosse apenas mais um tropo no feixe, mas se lhe for dado um tratamento especial torna-se um substrato substancializante.
Russell defendeu também uma ontologia de eventos como uma perspectiva de ausência de substância. Russell usava “evento” para a ocorrência de uma propriedade num dado lugar e num dado momento do tempo; tais eventos não são aconteceres, mas antes estados de coisas (veja-se mais à frente). Propôs que as substâncias comuns, e as suas partes mais fundamentais, são sequências de agregados de tais eventos.
Os elementos básicos nestas ontologias podem não ser simples nem indivisíveis, e não têm persistência. Contudo, estes estados de coisas ou eventos são substâncias humianas. Na verdade, a menos que não exista coisa alguma, algo tem de ser uma substância humiana e, nesse sentido, qualquer teoria da ausência de substância tem de estar errada.
Propriedades e relações. As propriedades são as características intrínsecas das coisas, que lhes pertencem quando as consideramos individualmente. As relações, envolvendo dois ou mais termos, são os modos sob os quais as coisas estão perante outras. Em muitos aspectos, as propriedades e as relações podem ser tratadas conjuntamente.
Propriedades como universais. As propriedades são habitualmente concebidas como universais que podem caracterizar um número infinito de instâncias. Só há uma Torre Eiffel, mas a altura da torre, o peso e a constituição de ferro são características que tem em comum com muitas outras coisas. O Problema dos Universais é o problema de explicar como poderia uma qualquer entidade real existir, total e completamente, em muitas instâncias diferentes. Este problema atraiu três propostas de solução: nominalismo, conceptualismo e realismo. O nominalismo e o conceptualismo negam, ambos, que as propriedades sejam genuinamente universais. Segundo o nominalismo, o único elemento comum a todas as coisas de ferro é poderem todas ser descritas usando o predicado “de ferro,” ou serem todas membros da classe das coisas de ferro, ou serem todas parecidas a alguns objectos de ferro típicos. Segundo o conceptualismo, o elemento universal consiste num impulso das nossas mentes para agrupar várias coisas. Estas teorias reducionistas têm tido partidários desde o tempo de Platão e foram especialmente prevalecentes entre os empiristas britânicos e os seus descendentes. O nominalismo e o conceptualismo foram explicitamente postos em causa por Russell nos Problemas da Filosofia (1912). A argumentação mais exaustiva contra tais perspectivas foi apresentada por D. M. Armstrong, Universals and Scientific Realism (1978).
O realismo com respeito aos universais é pelo menos tão velho quanto Platão. A sua teoria das Formas apresenta um realismo consumado que atribui às propriedades genuínas quer existência real, num domínio próprio, quer um estatuto superior a quaisquer instanciações que delas possam existir neste mundo. As Formas existem ante rem — isto é, estejam ou não instanciadas. Considera-se tradicionalmente que Aristóteles sustenta um realismo modificado, segundo o qual as propriedades são reais, e universais, mas só podem existir in rebus, enquanto propriedades de instâncias concretas. Encontra-se aqui uma vez mais a sua perspectiva de que o mínimo “susceptível de ser” é um isto-tal, uma união de um particular com um universal.
O realismo encontrou sempre duas objecções principais. Primeiro, que não é económico, especialmente na sua forma platonista. A questão da economia é um tema actual na filosofia da ciência, dado que pelo menos aparentemente as nossas melhores teorias físicas e químicas envolvem propriedades não instanciadas. A segunda objecção é que não consegue fornecer uma explicação coerente da ligação entre uma propriedade e a substância que é sua portadora, sendo esta a relação de inerência. A inerência não pode ser uma relação normal, porque nesse caso é apenas mais um universal que precisa de uma ligação de inerência entre os seus termos, a substância e a propriedade original. Mas se isto não é uma relação no sentido comum, é o quê? O problema da inerência dá sustentação a versões do realismo nas quais as propriedades são particulares.
Propriedades como particulares. Mesmo que a propriedade de ferro seja universal, o caso particular de ser de ferro que ocorre na Torre Eiffel pertence apenas à torre e é tão particular quanto a própria torre. A teoria dos tropos, tal como foi pela primeira vez desenvolvida por Donald Williams, trata a instância não como uma entidade dependente que emerge da instanciação de um universal, mas como uma substância humiana de pleno direito.
Quando se combina esta abordagem com uma explicação das substâncias comuns com muitas características em termos de feixes ou co-presença, o problema da relação de inerência desaparece. Há também outra economia significativa, pois não é preciso ter uma categoria separada para substâncias. Estas possibilidades são exploradas no livro Abstract Particulars, de Keith Campbell (1990).
Relações. Quando Russell reanimou o debate sobre o realismo deu às relações um estatuto inteiramente igual ao das propriedades inerentes. Na verdade, foram as suas reflexões sobre o papel das relações nos fundamentos da matemática e da lógica que o conduziram ao realismo. O realismo de Armstrong assume a mesma forma.
Há, contudo, uma longa tradição que atribui primazia às propriedades intrínsecas. Aristóteles sustentava que as relações são “a menor das coisas que são”; Hobbes, entre outros, sustentava que a existência de relações depende de um acto mental de comparação; e a perspectiva de Leibniz era que toda a relação se fundamenta numa característica intrínseca de um dos seus termos, ou de ambos. Este programa reducionista é exposto em Campbell (1990).
As relações são aparentemente dependentes, no sentido em que têm de ter substâncias como termos, e estas substâncias têm de ter propriedades intrínsecas. Assim, a menos que existam propriedades intrínsecas não poderá haver relações, mas não vice-versa. As teorias dos feixes, aplicadas a coisas comuns, dizem respeito apenas às propriedades intrínsecas. Incluir relações nos feixes conduz a problemas quanto ao lugar a dar às relações, o que por sua vez induz uma tendência a favor de um monismo como o de Francis Herbert Bradley, no qual as substâncias comuns são absorvidas numa totalidade única omniabrangente.
Poderes. Algumas propriedades, como quadrado, parecem pertencer ao modo de ser do objecto. Outras, como ser um solvente, parecem referir ao que um objecto pode fazer. Esta é a distinção entre propriedades categoriais e disposicionais. Uma linha de investigação retoma o princípio eleático e identifica as propriedades reais com as que conferem ao seu portador uma disposição para agir ou para ser objecto de actuação. Tais disposições sãopoderes; uma metafísica dos poderes é avançada no livro Powers, de George Molnar (2003) e em Scientific Essentialism, de Brian Ellis (2001).
Complexos. Substância e propriedade são categorias básicas. Em combinação, podem fornecer uma ontologia mais rica.
Estados de coisas. Um estado de coisas básico consiste num particular que tem uma propriedade, ou em duas (ou mais) particulares que estão numa dada relação. Uma propriedade única que inere num só particular é um mínimo “isto-tal.” O Tractatus Logico-Philosophicus (1921) de Wittgenstein apresentou uma ontologia na qual o mundo é composto de estados de coisas relacionais mínimos: os que efectivamente ocorrem são factos, restando além destes os meramente possíveis. Estes temas — que as categorias básicas só ocorrem em combinação, e que estas combinações constituem a realidade — são retomadas por D. M. Armstrong, no livro A World of States of Affairs (1997).
Eventos e processos.Um estado de coisas é estático. Dar conta dos aspectos dinâmicos do mundo exige uma explicação da mudança. Isto pode fazer-se usando sequências de estados de coisas: a estabilidade consiste em estados de coisas sucessivos muitíssimo parecidos entre si, ao passo que a mudança consiste em estados de coisas que a dada altura são substituídos por outros sistematicamente diferentes. Um evento é uma mudança singular, envolvendo um par de estados de coisas; um processo é uma série mais complexa de eventos.
Whitehead, em Process and Reality (1929), deu prioridade ao dinamismo; todas as substâncias que persistem aparentemente são efectivamente processos que se dão muito lentamente. O estatuto do espaço-tempo é controverso. Pode ser uma substância humiana; contudo, algumas explicações da matéria atribuem-lhe um lugar enquanto processo, uma sequência de relações mutáveis complexas entre particulares.

Objectos abstractos

O pensamento humano, especialmente na matemática e na lógica, parece envolver entidades que não têm aparentemente lugar no mundo espácio-temporal. Admitir tais itens é um desafio ao princípio da economia; contudo, é difícil conseguir reduções bem-sucedidas.
Números e conjuntos. Porque se pode representar todos os números na teoria de conjuntos, não é preciso admitir conjunto e números. Russell propôs-se eliminar os conjuntos a favor de funções proposicionais, mas isto revelou-se impossível de aplicar a mais do que um fragmento da matemática (Goodman e Quine 1947, Quine 1969). Porque as variáveis da teoria de conjuntos têm conjuntos como valores, e porque ser é ser o valor de uma variável, estamos comprometidos com a sua realidade — e isto é platonismo quanto a conjuntos e números. O tentativa mais importante de evitar o platonismo é o de Hartry Field (1980, 1989).
Objectos geométricos. Diferentemente de seja o que for que ocorra no mundo natural, os objectos da geometria — cubos euclidianos, por exemplo — são concebidos como perfeitos, imutáveis, intemporais e sem poderes físicos causais. Além disso, há geometrias, e objectos geométricos correspondentes, com muitas mais dimensões do que as que este mundo tem. Um espaço geométrico pode dividir-se e subdividir-se numa infinidade de configurações de diferentes dimensões. O platonismo na geometria envolve assim uma expansão infinita na ontologia.
Uma abordagem a esta questão é considerar que os objectos geométricos são abstraídos, isto é, tirados do seu contexto. Deste ponto de vista, todo o cubo é apenas um fragmento espacial particular de espaço-tempo e todo o triângulo é um fragmento de uma das superfícies espaciais do espaço-tempo. Um problema desta abordagem é que nem todas as formas estarão disponíveis. Se o nosso espaço-tempo está longe de ser perfeitamente euclidiano, não haverá cubos reais euclidianos. Podemos tratar estes objectos inexistentes como variações imaginárias das que efectivamente existem, e considerar que as geometrias que quantificam sobre tais coisas não são literalmente verdadeiras.
Lógica. A filosofia da lógica faz referência a proposições, operadores, funções e inferências. Estas são entidades abstractas, que se relacionam com o raciocínio aproximadamente do mesmo modo que os números se relacionam com a contagem e a medição. Os problemas e possibilidades de sucesso de um tratamento reducionista destas entidades são igualmente paralelos.

Seres necessários

Considera-se habitualmente que as coisas comuns existem contingentemente; isto é, existem, mas poderiam não existir. Tivessem as leis da natureza do nosso mundo sido diferentes, ou as condições iniciais, e haveria um grupo diferente de seres contingentes. Mas algumas coisas parecem imunes aos caprichos causais e do acaso; situando-se fora da rede causal, não podem ser trazidos à existência e não podem ser destruídos. São “seres necessários.” Se o platonismo estiver correcto com respeito a quaisquer objectos abstractos, haverá seres necessários e até, paradoxalmente, a classe vazia.
Para Aristóteles, seja o que for que exista ao longo de um tempo infinito é necessário porque ele defendia que ao longo de um tempo infinito todas as possibilidades acabariam por se efectivar. Para Plotino, qualquer ser divino estaria fora do tempo, e como tal não poderia mudar, não poderia deixar de existir e consequentemente seria um ser necessário. Para Tomás de Aquino, a necessidade de Deus deriva da sua simplicidade: a essência de Deus e a sua existência são idênticas; deste modo, Deus é um tipo de ser que tem de existir. Para Espinosa, toda a substância genuína é causa sui, contendo em si a explicação suficiente do seu próprio ser, e portanto pode garantir a sua própria existência sob todas as condições possíveis.
Duns Escoto, e depois Descartes, ligou o ser necessário à lógica: um ser necessário é aquele cuja inexistência seria auto-contraditória. “Os feijões reais não existem” é auto-contraditória mas apenas trivialmente porque a existência foi inserida na definição do sujeito. Isto não faz dos feijões feijões necessários. Se a existência não for inserida na definição do termo sujeito, é duvidoso que qualquer negação de existência seja auto-contraditória. A melhor discussão da noção de ser necessário é a de Alvin Plantinga (1974, 1975).
Alasdair MacIntyre e Keith Campbell

Bibliografia histórica

Fontes primárias

  • Baumgarten, Alexander Gottlieb. Metaphysica. Halle, 1740.
  • Clauberg, Johannes. Opera Omnia, edited by J. T. Schalbruch. 2 vols., 281. Amsterdam, 1691.
  • Duhamel, Jean-Baptiste. De Consensu Veteris et Novae Philosophiae. Paris, 1663.
  • Duns Scotus, John. Opera Omnia. 12 vols. Paris, 1891-1895. Vol. III, Quaestiones Subtillissimae Super Libros Metaphysicorum Aristotelis.
  • Heidegger, Martin. Being and Time. Trad. John Macquarrie e Edward Robinson. New York: Harper, 1962.
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quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Adonias Filho JH

O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO
JHenrique


A interpenetração dinâmica dos planos do enunciado e da enunciação do romance de Adonias Filho configura uma trama de efabulação radicalmente dramática. A intriga central, que norteia o destino de todos os personagens, gira sempre em torno do sortilégio da morte. O enunciado narrativo é o drama da vida que não subsiste, senão porque a morte existe. Compelidos pelo ritmo de transe de um mundo que mergulha as suas raízes no coração das trevas, os personagens são condenados a transpor em vida os umbrais da morte. Sofrem a morte dos outros e de si mesmos, testemunhando o suplício de uma existência tartárica. Protagonizam a mitologia da morte, realizando o estranho trânsito para um estado plutônico-subterrâneo. Todos padecem as influições nefárias dos mortos. Eles são os servos da morte, os oficiantes de um rito pavoroso, cujo mito circunscreve uma natureza que não conhece o homem, e em que o homem não se reconhece. Proclamando o sacrifício de tudo que existe, a natureza deste mito ou o mito desta natureza se inscreve na alma humana como a sinistra epifania de um poder demoníaco em sua encarnação bestial e destruidora. O mundo em que os personagens vivenciam a agonia da morte se representa como a encenação de um influxo maligno, que fantasmagoriza o universo em que se exerce a experiência humana. O deserto imóvel da natureza e o gesto paralisado do homem são o anverso e o reverso de uma mesma potência de nadificação. A desumanização do personagem e a devastação do cenário emblematizam a interiorização e a exteriorização do propulsar demoníaco, que neutraliza e dissolve as normas do dia nas caldeiras passionais de uma excessividade caótica.
Em consonância com o sortilégio da morte, a técnica dramática de composição do romance se caracteriza pela interação dialética de um processo de enunciação totalmente sincopado, dissonante e trágico. Os eventos são representados como um rapto, uma captura inominável. A seleção, o adensamento e a condensação de um acontecimento único e singular se consuma na proliferação de uma galeria de mortos, que sobrevivem vampirizando o sangue e o espírito dos vivos agonizantes. O advento da morte, que constitui o evento sinistro de um mesmo drama essencialmente agônico, não se compatibiliza com a tradicional narração progressiva de eventos consecutivos. Pelo contrário, provoca a segmentação da narrativa em seqüências descontínuas e funcionalmente justapostas. Os episódios se revelam dramáticos em si mesmos, e não somente como passos e trâmites de um objetivo terminal de máxima tensão. A dramaticidade de cada episódio se manifesta através de enunciações que representam obsessivamente um acontecimento que não só inspira aflição e terror, mas também suscita o desencadear intempestivo de paixões convulsivas, convertendo os seres humanos em almas cativas que se exasperam inutilmente na gestação insana das sombras.
A técnica fundamental de intensificação dramática mobiliza a estratégia narrativa de explicar o acontecimento partilhado e sofrido por todos mediante a utilização alternada de vários pontos de vista. A multiplicação dos focos narrativos reflete as diversas tentativas para se compreender o tenebroso mistério da vida que não cessa de morrer e da morte que não cessa de renascer das sombras da violência, do clamor e da vingança. A fim de encenar o drama dos servos da morte, a arte narrativa de Adonias Filho se notabiliza pela inserção do mecanismo estrutural do enredo trágico na trama de efabulação romanesca. A interação dialética do rigor da composição e do vigor da paixão, que singulariza o drama trágico, comparece na estrutura arquitetônica da narrativa de Adonias Filho. Os romances que se intitulam Os Servos da Morte , Memórias de Lázaro e Corpo Vivo constituem uma trilogia romanesca, que caracterizamos como "O perséquito dos mortos". Do diálogo intertextual com a tragédia grega, a que se reporta a apropriação romanesca do princípio arquitetônico da trilogia de Ésquilo, resulta a revolução estrutural a que o romancista submeteu a tradição do romance brasileiro. A arte dramática do romancista se traduz principalmente no intercâmbio dialógico dos planos gerais e particulares da narrativa. Os planos gerais são verdadeiros prólogos dramáticos, que antecipam e concentram os temas, os motivos e o tom dominante do drama a ser encenado pelas múltiplas visões narrativas. Os planos particulares funcionam como atos e cenas, como versões diferentes de uma história que insiste em permanecer como a cifra obscura de um destino avassalador. A lei desta narrativa se define, portanto, como a justaposição descontínua das imagens de um mundo furiosamente em dissolução. O que mais surpreende, porém, neste romancista, é a energia dialética com que expõe atos e cenas, aliando o extraordinário poder de síntese verbal a uma formidável passionalidade. É precisamente esta harmonização da economia programada dos recursos expressivos com a desmesura aparentemente incontrolável do conteúdo existencial representado que confere à sua obra o estatuto privilegiado de uma consumada arte dramática.
O drama agônico de Os Servos da Morte é basicamente representado em três atos com seus respectivos prólogos dramáticos. Os atos um e dois contêm fundamentalmente três cenas, e o terceiro, duas. Em todos os atos e cenas, a morte é caçadora, e todos são caçados. A pulsão erótica implica a compulsão tanática. Elisa é o emblema desta paixão mortífera. Renegada pelo pai que lhe recusa a paternidade e a interna no colégio de Ilhéus, a menina de dez anos é subjugada por um temperamento mórbido. Progressivamente se reconhece parasitária, embrutecida, completamente alheia e estranha ao ser humano. As crianças se lhe afiguram uma abstração total, uma multidão infantil. Só se compadece do que é inumano. Identifica-se com os fios d´água que correm entre parasitas, lavando os pedaços brutos de pedra. Sente o muro de pedra como uma pessoa mais nobre do que o homem. A matéria dura da pedra se lhe apresenta como o correlato objetivo de sua alma, que se imobiliza e se petrifica no ódio surdo contra todos os seres viventes. Retornando a casa aos dezessete anos, logo depois que o pai abandona a família, deixando como legado os encargos de uma dívida que ameaça reduzir mãe e filhas à miséria, a jovem concebe o plano de procurar Paulino Duarte, despertar-lhe desejos, criar-lhe uma paixão.
O projeto de Elisa não se limita a sacrificar-se, vendendo o corpo para resgatar a dívida da família. A tensão impetuosa da rebeldia distende em sua alma a paixão furiosa da vingança. O preço que estipula para o seu sacrifício é a destruição do que se lhe apresenta como a raça maldita dos homens. Os filhos do casamento já estão amaldiçoados no ventre materno. Nascendo, crescendo e se parecendo cada vez mais com o pai, cada filho lhe aumenta o ódio contra todos. O adultério se lhe impõe como possibilidade única de executar o sinistro desígnio de aniquilar os Duarte. Percebe ser necessário ter um filho somente seu, que seja a carne de sua carne, o sangue de seu sangue, a alma de sua alma. Concebe um filho com Anselmo com o deliberado propósito de lhe insuflar o veneno de seu furor vingativo. A gestação do filho se processa como incubação de uma sombra da violência. Predestinado desde o ventre materno, Ângelo nasce da morte da mãe para sofreviver e disseminar o sortilégio da morta. A mútua implicação do morrer da mãe e do nascer do filho simboliza a epifania sinistra de uma transfusão diabólica. Elisa se transforma no espectro do filho que não vive, senão como a sua sombra, o seu reflexo macabro, a sua presença terrificante. A casa dos Duarte se converte no inferno das almas .
Paulino Duarte foi atingido em primeiro lugar pela vingança de Elisa. Permanecia horas como uma estátua, sentado, as mãos cruzadas, os pés atados no chão, o corpo assumindo uma imobilidade de rocha. O seu espírito, queimando como uma chama, inutilmente procurava iluminar os espaços negros da inteligência. Assim se inicia o processo da captura que lhe imobiliza o movimento da vida e o transforma numa matéria empedernida. O espírito remanescente é a chama que consuma o processo de carbonização da fisionomia, que se transmuta na máscara mortuária. Petrificado como o magma depois da erupção, Paulino Duarte subsiste como prisioneiro da morte, como servo da morta. Ele próprio não tarda a ficar cego. Ainda em vida, e justamente em reação ao nojo de ser possuída por ele, Elisa arquiteta a sua cegueira, lançando-lhe um candeeiro aceso, cujo tubo quente lhe queima a face, provocando enorme chaga que, paulatinamente, lhe atinge os olhos. Não podendo contemplar as coisas, os objetos e os seres que o rodeiam, toda a sua visão se consome no suplício das imagens de um mundo morto. Assiste ao renascimento dos mortos que existem dentro dele, vivos nas trevas, principalmente Elisa, Emílio, Juca Pinheiro, o pai bêbado. Perfaz-se, portanto, o mariticídio diabolicamente tramado. Morto em vida que não é vida, vendo só o que foi, contemplando defuntos, ouvindo o que já não existe, o marido sofre o perséquito dos mortos. Para os filhos, resta apenas o legado da miséria. São escravos da morta, os servos da morte.
O drama trágico de Memórias de Lázaro se representa em quatro atos com os respectivos prólogos dramáticos, precedidos por um prólogo geral. Em cada ato, sucedem-se cenas de aflição e terror. O que parece ser a segunda cena do quarto ato é, na verdade, o epílogo dramático da narração cujo decurso segue o curso maldito do Vale do Ouro. Signo metálico do sangue que aduba a terra da maldição, o vale é a mortalha dos seres que o habitam. Recortado por uma estrada infinita, que se inicia em parte alguma e se encaminha para lugar nenhum, o vale é o símbolo do inferno das almas. Neste cenário tenebroso, mais uma vez o erotismo se manifesta como arte de armar a morte. Quem desempenha este ato inaugurado por Elisa é também uma mulher, chamada Rosália, que se compraz, ainda bem jovem, em arrancar e queimar os seus cabelos. Foge sempre do pai como de um monstro, detestando a sua presença. Prender e matar ratos, eis a sua distração predileta. Espancada pelo pai por estar a cortar as penas e a furar os olhos dos pássaros, Rosália deforma-lhe o rosto com um facho aceso. Projeta casar-se com um homem qualquer, que a liberte do jugo paterno e, sobretudo, que a ajude a cumprir o desígnio jurado do parricídio. Reconhecendo a natureza desumana da filha, o pai se opõe ao seu casamento, seja com quem for, alegando o dever de sustar a multiplicação de seu sangue maldito. Rosália, porém, efetiva o seu plano, conquistando Alexandre e exigindo que ele a arranque à força da tutela paterna.
Alexandre se apresenta ao pai de Rosália e lhe declara categoricamente que pretende desposá-la a qualquer custo. O pai se irrita, investe contra o pretendente, ambos lutam violentamente. Rosália aproveita a oportunidade da acirrada luta para executar o parricídio, aproximando-se furtivamente e esfaqueando mortalmente as costas do velho. Na tentativa de inocentar Rosália, Alexandre, antes de fugir da cena do crime, a aconselha a esperar os irmãos e lhes dizer que foi ele o assassino. Quando chegam os irmãos, Rosália lhes comunica que o pai foi assassinado por Alexandre. O irmão Roberto não aceita a versão da irmã, adivinhando ter sido ela mesma a assassina. Chicoteiam-na até quase à morte. Para se vingar do irmão, Rosália, logo que se reencontra com Alexandre, conta-lhe que foi estuprada pelo irmão Roberto. Vivendo juntos como homem e mulher, Alexandre não toca sequer o corpo de Rosália. Inicialmente, porque as chicotadas o deixaram em chaga viva. Depois, porque a mulher lhe diz estar grávida de Roberto. Na ausência de Alexandre, Rosália atrai Gemar Quinto a sua casa. Trata-se de um leproso que vagueia o seu corpo morto pelo vale, como um entulho no pó dos caminhos desertos. Espreitando a casa da irmã, Roberto surpreende Rosália a seduzir o leproso, exibindo-lhe as pernas, os seios nus. Interpelada pelo irmão, Rosália lhe responde que atraiu Gemar Quinto a sua casa, porque queria a sua doença para transmitir a Alexandre e a todos os habitantes do vale.
Ciente da trama diabólica da irmã, Roberto a mata, convencendo-se de que estava a cumprir um dever, uma ação de extermínio de uma força destruidora. Quando retorna a casa, Alexandre a vê dependurada na viga do quarto, uma corda no pescoço. Enterra-a no chão do próprio quarto e sai vagando como uma sombra errante pelo vale até ser recolhido por Jerônimo. Único amigo e protetor de sempre, Jerônimo assegura a Alexandre que Roberto não violentou a irmã. Alexandre não acredita, exige que desenterrem juntos o cadáver de Rosália, que se lhe devassem as entranhas na presença de Roberto para se comprovar a existência ou inexistência do feto. Cavado o solo, o corpo em putrefação não permite o almejado exame comprobatório. Alexandre, subjugado pela ira diante do irremediável, mata Roberto, e passa a viver sob o acicate do sortilégio da morta. Em qualquer parte, e a toda hora, contempla as trevas escarnando os ossos da mulher. Sente nas narinas o cheiro da carniça. Ouve o estouro de um ou outro órgão do corpo que se desfaz. Diante dele, a imagem de Rosália morta não se desloca nem se apaga, permanecendo como uma visão direta. O terror se implanta no centro de suas órbitas. Completamente dominado pela sinistra visão, Alexandre erra sem destino, alheio a tudo e a si mesmo, completamente convertido no servo da morte, no escravo da morta.
Corpo Vivo contém quatro atos com os respectivos prólogos dramáticos. Cada ato é um mosaico de representações imagéticas, articulado principalmente pela visão de João Caio. Seu desempenho equivale ao de uma câmera cinematográfica, cujo foco se desloca, representando em profundidade o plano geral da narrativa. Através das imagens que se enquadram em seus olhos é que assistimos à representação da saga do protagonista Cajango. A função dramática deste plano geral consiste na encenação da legenda de uma vida que, submetida ao ditame do clamor, do ressentimento e da vingança, finalmente se liberta das sombras da violência. Já os planos particulares constituem as visões cênicas, que sustentam a trama imagética das sucessivas versões de um acontecimento perpassado de aflição e terror. Entre estes planos, o principal é formado pela narrativa de Abílio, inteiramente concentrada na exposição em relevo do mecanismo estrutural da gesta de Cajango, o menino que assistiu, escondido, ao assassínio dos pais e dos irmãos, conseguiu escapar e ocultar-se na selva, onde foi acolhido por Inuri, o índio que o iniciou nas artes da resistência implacável e da guerra vingativa. Todos os planos narrativos se conjugam na suscitação do corpo movente das imagens que tecem a urdidura da efabulação. A técnica dramática de composição é similar à dos romances já mencionados. Consiste num processo de montagem, que resulta do enquadramento de imagens funcionalmente justapostas. A narrativa se teatraliza, põe diante dos olhos do leitor cada uma das cenas, e as imagens assumem a iniciativa do processo narrativo. Toda e qualquer imagem funciona como uma visão direta do que se representa. Ao invés de uma trama de ações, presenciamos um drama de paixões.
A configuração imagética da estrutura narrativa representa dramaticamente a legenda de uma vida, a de Cajango, que se forma e se transforma para além do sortilégio da morte. Os eventos não são propriamente narrados nem descritos, mas refletidos na consciência e, sobretudo, na experiência do personagem inserido numa determinada situação dramática. Não há, pura e simplesmente, a figura tradicional do narrador, mas, sim, os refletores, quer dizer, os personagens que refletem e filtram em suas visões as imagens que se tecem como símbolos de um mundo em gestação. É no rigor e vigor das imagens que a narrativa se processa, emoldurando-se no espaço cênico como uma visão direta projetada pela tela mental em que se converte o personagem-refletor. Justamente porque são receptores é que os personagens são projetores de imagens. São olhos-câmeras especialíssimos, que não se limitam tão-somente à visão, mas, sobretudo, à vivência do evento. Não atuam apenas como videntes, mas também como auditores, como atores de uma experiência imediatamente vivida por todos os sentidos, sejam gustativos, olfativos, etc. Regida pela trama imagética de efabulação, a narrativa é necessariamente descontínua, pois a cada momento se enquadra uma nova imagem. Não há nenhum narrador substantivo, porque o sujeito se dessubstancializa, diferindo continuamente de si mesmo, transformando-se numa função narrativa que se modifica de acordo com a imagem que o domina. Solidariamente vinculada ao enunciado trágico, a enunciação é radicalmente dramática. Supõe uma despersonalização, a que se seguem diversas personificações.
A interação dialética do vigor passional e do rigor racional da arte dramática de Adonias Filho não só aparece na estrutura arquitetônica de cada romance, mas também comparece nas constelações narrativas de um mesmo princípio arquitetônico de composição. Romances diferentes se irmanam como variações de um princípio artístico fundamental. Os romances que compõem a trilogia que intitulamos "O perséquito dos mortos" foram concebidos em função de um projeto, de um cálculo, de um estatuto artístico tão rigoroso quanto o princípio arquitetônico da trilogia de Ésquilo. Três dramas trágicos compõem a Oréstia . Todos representam as emoções de aflição e terror, suscitadas por atos nefandos, tais como o mariticídio em Agamêmnon e o matricídio em Coéforas. O trágico decorre do circuito inexorável da vingança. Os mortos assassinam os vivos. Morto, o rei Agamêmnon tacitamente decreta a morte da rainha Clitemnestra, a mariticida. A imagem cênica que domina a representação do drama Coéforas é o túmulo de Agamêmnon. Orestes, filho de ambos, se vê compelido a matar a mãe para vingar o pai. Vivo, o filho se torna servo do pai morto. Ao realizar o ditame da vingança, assumindo a condição terrível do matricida, Orestes é subjugado pelo sortilégio da mãe morta e, sobretudo, perseguido pelas Erínias, que são terríveis potências do mundo subterrâneo, que não perdoam nenhum crime contra pessoas do mesmo sangue. A luta de morte é a disputa entre os poderes masculinos e femininos, que se apresentam nestes dois dramas como antagonistas irredutíveis. A violência trágica resulta de uma oposição antagônica. O terceiro drama, simbolicamente denominado Eumênides, apresenta o julgamento de Orestes e, por intercessão de Palas Atena, a oposição antagônica se transmuta em oposição complementar. Celebra-se uma aliança entre os poderes adversos e, conseqüentemente, se realiza a catarse das emoções de aflição e terror.
O romancista Adonias Filho absorve da trilogia de Ésquilo o esquema dinâmico de se representar até o paroxismo um plexo de paixões aflitivas e pavorosas para, finalmente, efetivar a catarse ou liberação dessas emoções trágicas. O romancista encena três vezes um mesmo drama de aflição e terror até que a vida estrangulada pela morte possa finalmente libertar-se do inenarrável rapto da estranha potência de nadificação. A sua trilogia romanesca não é tão-somente a mimese do mito da natureza, mas também a catarse da natureza do mito. A lição trágica é que o mal não pode ser vencido pela astúcia da razão. Não resulta de um erro racional, mas de uma errância passional. Na experiência da paixão, e não na consciência da razão, é que se viabiliza a catarse do mal. O exorcismo das sombras do clamor, do ressentimento e da vingança é o ato supremo do homem que desperta de entre as almas que dormem no cárcere do que foi. A última representação da tragédia romanesca da maldade é a celebração de um corpo vivo, que ultrapassa os limites circunscritos pelo reino dos servos da morte, que são reféns dos mortos, corpos mortos, portanto. A conversão do corpo morto em corpo vivo constitui a origem primeira e o fim último da trilogia do perséquito dos mortos. A gesta de Cajango é a gestação de um destino que se impõe para além da impregnação demoníaca dos mortos que vivem nas trevas, das trevas e pelas trevas.
A inserção do mecanismo estrutural da tragédia grega na trama de efabulação do romance dramático de Adonias Filho não se explica somente na apropriação do princípio arquitetônico da trilogia de Ésquilo, mas também na assimilação do enredo trágico genialmente concebido pelos poetas Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Importa assinalar que a teoria tradicional do enredo trágico não corresponde ao drama ático. A interpretação canônica da tragédia grega, formulada por Aristóteles e reiterada ao longo dos séculos, concebe o enredo trágico como representação da ação, que se efetua na sucessão lógica dos eventos consecutivos, na trama dos acontecimentos, na concatenação dos fatos. Das peripécias e reconhecimentos que se realizam na seqüência logicamente ordenada decorrem o surpreendente, o palpitante, o emocionante, o que normalmente se entende por dramático. Convém sublinhar que esta interpretação do mecanismo estrutural do enredo trágico se tornou normativa para a teoria do drama na civilização ocidental. E todas as teorias dramáticas modernas, que privilegiam a representação progressiva de eventos consecutivos ou a causalidade dos acontecimentos, são tributárias da poética aristotélica. No entanto, a interpretação aristotélica da tragédia grega não se compatibiliza com a natureza do drama ático, não compreende os atores trágicos e, sobretudo, ignora completamente o sentido e a função do trágico. A tragédia grega não é a representação, mas, sim, a interpretação e a vivência da ação. Não constitui objeto de representação propriamente dramática o que aconteceu nem porque aconteceu. No drama ático, o que se representa é a demanda do sentido do que aparece e acontece. Numa formulação paradoxal, mas rigorosamente verdadeira, a tragédia grega é um drama sem ação, um drama estático. E os atores não são puramente humanos. Na poesia trágica dos gregos, os homens não se concebem divorciados dos deuses luminosos ou trevosos. Na verdade, a tragédia grega é fundamentalmente a encenação da luta entre os novos e os antigos deuses. Oréstia é a disputa dos deuses olímpicos e das divindades subterrâneas.
Não só o drama de Aristóteles não é o drama da tragédia grega, como também o trágico teorizado pelo filósofo não corresponde ao trágico poematizado por Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. O trágico aristotélico é basicamente uma catástrofe que resulta de uma ação cujo efeito desastroso se desconhece. O herói cai em desgraça, porque comete um erro (hamartia ), porque faz o que não sabe ou não sabe o que faz. Esta concepção do erro trágico decorre do ensinamento de Sócrates, segundo o qual o homem erra por ignorância. A catarse seria, pura e simplesmente, a purgação da ignorância, a passagem da obscuridade para o ilumínio do reconhecimento (anagnorisis ). Mas o trágico da tragédia grega é principalmente ontológico, e não meramente epistemológico. A tragédia não é apenas do saber, mas, sim, do ser humano. O que há de abissal no homem é que ele não se atém a fundamento algum nem se detém diante de nenhum ordenamento do poder subterrâneo ou do dever olímpico. Creonte confronta o poder subterrâneo, e Antígona desafia os mandamentos olímpicos. O contorno essencial do horizonte vital do herói trágico se lhe apresenta mais como convite a superá-lo do que como acicate da advertência ou temerosa reverência. Sua entusiástica desmesura se manifesta na dupla excessividade originária da vontade de transcendência e da capacidade de transdescendência. Ir para além, para cima ou para baixo, significa não se limitar numa razão de ser e, conseqüentemente, ultrapassar-se na paixão do acontecer.
Nas obras primas do teatro grego, as ações decisivas ocorrem fora do palco. Édipo que perfura os olhos, Jocasta que se enforca, o ingresso de Édiplo no sacrossanto bosque das Eumênides não constituem objeto de representação propriamente cênica. E os relatos são extraordinariamente parcos e escassos. Em Sete contra Tebas, o mensageiro comunica laconicamente que a cidade foi salva. Nada se ouve acerca do que efetivamente aconteceu nem se diz como se tornou possível a vitória. Há peças em que o terrível, que conforma o conteúdo da tragédia, não só não se representa, mas, sobretudo, é pressuposto como um sucesso há muito tempo acontecido. Édipo-Rei , o exemplo preferido de Aristóteles, não é, como pretende o filósofo, uma tragédia de acontecimento. Ao se iniciar o drama, tudo já aconteceu: o herói já matou o pai e se casou com a mãe. O que se representa não é o acontecimento, mas o paulatino e progressivo esclarecimento do culpado, que se consuma na tragédia do auto-reconhecimento. O drama se concentra na interpretação, e não na representação dos fatos. No Agamêmnon, o mariticídio não é cenicamente representado, mas previsto e predito pela visão sobrenatural e pela estranha dicção de Cassandra. Em Os Persas, a catástrofe denominada trágica já aconteceu antes mesmo de se iniciar o drama. Necessário se torna reconhecer, portanto, que a tragédia grega é destituída do que tradicionalmente se entende por ação.
Nos Sete contra Tebas , os acontecimentos decisivos ocorrem fora do palco. O sorteio no campo argivo, em que se define a estratégia do combate, o ataque à cidade, a batalha e, sobretudo, o duelo dos irmãos são fatos do enredo, mas não são apresentados à visão do espectador. Ésquilo abstrai dos fatos os aspectos dramaticamente significativos, concentrando-se na representação dos efeitos mentais e emocionais dos eventos. O que se representa não é o evento, mas a sua vivência dramática. O drama expõe o decurso inexorável de uma maldição herdada. Inicialmente, o poeta apresenta a aflição de uma cidade ameaçada por um sortilégio maligno. Em seguida, no clímax do drama, exibe o advento sinistro da maldição, que se apodera de um dos membros da família maldita de Édipo, transtornando-lhe o equilíbrio mental. Finalmente, os espectadores contemplam os resultados da maldição, consumados na destruição da estirpe masculina da família edipiana e na redenção de Tebas. Gradualmente, a representação dramática se concentra nos irmãos amaldiçoados, isolando-os do resto da cidade. No prólogo, o que não é visível para os espectadores é sugerido pela imaginação. A menção a muralhas, torres e portões nos limites entre a cidade e seus inimigos é que influencia a concepção do que se vê. Outro procedimento fundamental para converter em cena visível o que excede a possibilidade de visão e audição dos espectadores consiste na utilização dramática da sentinela como refletor dos eventos. Os espectadores vêem as atividades dos inimigos através de seus olhos. Não se representam ações racionais, mas reações passionais. Após Eteócles terminar a sua oração, conclamando a todos para a defesa da cidade, o coro adentra o palco completamente transtornado e entoa, num ritmo frenético, uma ode que traduz, não só o terror das virgens tebanas, mas também o caos e o pânico da cidade sitiada. Como o texto se reparte em seções definidas, diversas partes do coro, ou membros individuais, alternam exclamações diante do avanço dos invasores. Este arranjo coral contribui para fortalecer a atmosfera geral de confusão generalizada. A forma de expressão do párodo corresponde isomorficamente ao conteúdo caótico da agitação e do tumulto que se representa. Os comentários relativos ao avanço da armada argiva rumo à cidade são entremeados de súplicas aos deuses protetores de Tebas, cenicamente representados em suas estátuas. As virgens do coro, diferentemente da audiência, podem divisar a planície e observar o avanço dos adversários. Elas descrevem e, simultaneamente, reagem ao que vêem. Quanto mais próximo o exército inimigo, tanto mais frenéticas se tornam as virgens. A contraparte visível do assalto é a resposta passional do coro, pois o seu pânico corresponde à ferocidade dos inimigos. Através da reação do coro é que os espectadores experimentam o perigo que se aproxima. O párodo mostra o efeito da guerra, e não a guerra propriamente dita. O drama grego, particularmente o de Ésquilo, não é a representação da ação logicamente concatenada, mas, sim, a representação das emoções passionalmente suscitadas pelos eventos. A tragédia grega é um drama de paixões, e não simplesmente uma trama de ações.
Intimamente associada ao mecanismo estrutural da tragédia grega, a trilogia romanesca de Adonias Filho é genuinamente dramática, porque não se limita à representação de ações logicamente concatenadas. Pelo contrário, representa as emoções de aflição e terror passionalmente suscitadas pelo advento sinistro do perséquito dos mortos. E o drama representado é trágico, porque os personagens não sofrem pelo que fazem, mas pelo que são. Eles são os servos da morte, os prisioneiros dos mortos. Todos se nos apresentam subjugados pelo sortilégio maligno da estranha potência de nadificação. Em Memórias de Lázaro, por notável exemplo, o poder destruidor se patentiza na sinistra epifania do espírito do vale. No prólogo geral, com que se inicia o romance e se antecipam os temas, motivos e o tom dominante da narrativa, o vale não é descrito realisticamente como um cenário físico, mas apresentado simbolicamente como o inferno das almas que o habitam. As imagens que compõem o simbolismo infernal do espírito do vale são a estrada, o canal do lodo e, sobretudo, o vento. A estrada é caracterizada como infinita com suas curvas, uma linha sinuosa, uma serpente, a espinha, o coração do vale, o seu mau destino, o trajeto que se impõe. Infinita, a estrada não conduz de um lugar a outro, porque não tem início nem fim. Curvilínea, não leva a parte alguma, porque traz sempre de volta. Sinuosa como uma serpente, é traiçoeira, nada tem de acolhedora. Como o corpo em torno da espinha, o vale existe, porque coexiste com a estrada. Igual ao coração, que recebe o sangue e o bombeia, a estrada recolhe e dissemina a emanação mefítica de seu mau destino. Simbolizando o circuito fechado de um ditame inexorável, a estrada é o trajeto da clausura que se impõe a todos os habitantes do vale. Quanto ao canal do lodo, trata-se de um fundo sulco de lama e água morta, pegajoso, fétido e apodrecido. O lodo do canal se revolve como uma lava incandescente. Tudo que cai no canal é tragado pela lama viscosa. E o vento é a voz do vale, o alarido tenebroso que soa como uma litania fúnebre e ressoa num guaiar de convulsões andantes. Símbolo do látego das almas, atuando como um demônio vivo, o vento açoita o capim crestado, fustiga as reses e o pó da estrada, e o seu lamento provoca o endurecimento dos nervos dos viventes que agonizam atormentados pelo espírito sinistro do vale.
O princípio que articula o enredo trágico das Memórias de Lázaro é a epifania sinistra do espírito do vale, que se representa na trama das imagens, e não das ações. O drama da paixão de Alexandre é travejado pela trama imagética de efabulação. O personagem não age, apenas sofre o efeito deletério da atração sinistra da imagem do vale. Mesmo quando se evade do circuito do vale, escalando a montanha e realizando a penosa travessia da planície de pedras, a imagem do vale o persegue como uma visão direta. Na mata de Terto, na vila de Coaraci e, sobretudo, nas terras de Natanael, sente-se atraído pelas imagens da estrada, do canal de lodo, do vento triste e violento. Possuído pela aparição fantasmagórica do espírito do vale, sente-se compelido a retornar ao lugar infernal de onde jamais conseguiu sair. O deslocamento físico no espaço apenas enfatiza, por contraste, a paralisia de sua alma para sempre coagulada no tempo do inelutável passado. Petrificada como o magma depois da erupção, a sua vida se consuma no reconhecimento de que o espírito do vale é o fogo infernal, que calcina tudo que é ou existe. O lodo que viscoso fervilha no canal é fogo que carcome a terra. Raio do inferno, e não fonte de vida, luz que não tem brilho, mera chama sem cor que escoa de um céu de chumbo, o sol do vale é uma espécie de gás que esgota a seiva e queima as raízes das plantas, ao mesmo tempo em que acirra o ódio e alucina o sangue dos homens. A lepra de Gemar Quinto é fogo sangüíneo, que lhe devora o corpo. O destino deste leproso simboliza a condição trágica dos habitantes do vale. Embora não fisicamente, os habitantes do vale são psiquicamente leprosos, simplesmente porque, dominados pela fúria do sangue e pelo ódio do espírito, excecutam o macabro sacrifício de corpos humanos, na propagação diabólica de uma carnificina generalizada. Anima , alma que move todos os corpos, deriva de anemos, vento. Em grego, espírito se diz pneuma, o spiritus dos latinos. Pneuma e spiritus provêm de pnéo e spiro, ambos significando respirar. Dia e noite respirando o alento mortal da escaldante lufada e do soturno alarido do vento que age como um demônio vivo, como o látego das almas carbonizadas e dos corações empedernidos, os vivos agonizantes e os mortos que vivem nas trevas são inspirados pelo fulgor sombrio e pelo sopro demoníaco do tenebroso espírito do vale.